Capítulo 19 (Parte 1): Por um punhado de likes
Havia um silêncio mórbido, quase embaraçoso entre ela e a mulher em sua frente. De todos os momentos que algo podia dar errado, foi justo agora, o que podia ser a sua passagem só de ida para o sucesso absoluto. Mas não ia, a maldita câmera não funcionava de jeito nenhum.
— Droga… — comentou, baixinho. Mas a mulher em sua frente percebeu. Sem dizer uma única palavra, pegou a câmera das mãos da jornalista e olhou, apertou alguns botões e, com apenas isso, percebeu o erro.
— A bateria tá com mal contato. — Quando falou isso, tirou a bateria da máquina e esfregou em sua roupa por poucos segundos. Colocou ela de volta e, num passe de mágica, a câmera estava como nova. — Aqui está.
— Obrigada, senhora…
— Eu não sou senhora — exclamou num tom calmo, mesmo que paradoxal — não sou casada para ser senhora. Me chama só de Raimunda.
— Certo, Raimunda. Podemos começar?
— É claro, Natálie. Te chamei aqui para isso, não é?
Natalie confirmou com a cabeça com um sorriso amedrontado. Ligou a câmera e ativou o modo vídeo, fez uma ou duas configurações e, finalmente, começou a falar.
— Certo. Você dispensa apresentações, todos sabem quem você é. Mesmo assim… Gostaria de falar algo a seu respeito antes de eu começar as perguntas?
— Bom, eu não diria que as pessoas sabem que eu sou, mas acredito que depois dessa entrevista, vão saber quem é realmente Raimunda.
— Muito bem. Raimunda, embora todos saibam quem você é, nem todos sabem como sua… “carreira” começou, no caso, como se tornou uma gunslinger. Poderia contar um pouco sobre como foi o ocorrido? Quais eram seus pensamentos?
Raimunda deu um sorriso de canto, um sorriso de uma pessoa que lembrava os velhos tempos. Levantou-se da cadeira que estava sentada e começou a andar pelo local.
— Lembro até hoje quando me inscrevi no torneio. Eu tinha dezessete anos e só iria fazer dezoito um dia antes do torneio. Precisei subornar o responsável pela inscrição para participar. Em relação ao torneio… Não foi difícil. Meus adversários eram uns palermas lentos.
— E como foi pegar sua slinger pela primeira vez?
— Mágico. Acho que todo gunslinger vai se identificar: a sensação de poder que toma seu cérebro quando você forja um pacto com a arma, o como você se sente indestrutível quando seus sentidos afloram e sua força muscular aumenta de um segundo pro outro… Sabe, antes eu tava planejando em me registrar e manter minha carreira de crime de forma discreta, sem chamar a atenção. Só que não deu! Quando eu peguei a arma, sabia que nada poderia me parar. Então eu explodi aquele estádio e nunca me registrei.
— E tempos depois, entrou no ramo de caça a recompensas e criou a Wild Hunt, hoje, o maior grupo terroris… criminoso.
— Pode chamar como quiser, não me importo. — Raimunda pegou uma garrafa de uísque. Após tomar alguns goles, continuou: — Mas foi por aí mesmo. A Wild Hunt original era um grupo de cinco pessoas, mas acabou se expandindo.
— Estima-se que cerca de cinco por cento dos gunslingers registrados de Romaniva são secretamente parte do grupo, sem contar os que não são registrados.
— Não me parece errado, mas eu não perco tempo contando os membros. Muitos morrem bem cedo, coisa do trabalho ou do meu humor.
Natálie tremeu com aquele comentário.
— E… é um negócio lucrativo?
— Quando você caça os peixes grandes, sim, e muito. Donos de empresa, políticos, artistas são os alvos que mais rendem. Às vezes é solicitado que a morte pareça… acidental. Mas nesses casos, o pagamento compensa o tédio.
— Não gosta de tédio?
— E quem gosta?! Sério mesmo! Eu prefiro fazer uma caçada de graça do que cometer algo tediante. Tráfico de drogas, armas, pessoas… tudo isso é bem mais lucrativo, mas é muito mais chato. É rotineiro: você faz o seu produto e depois dá um jeito de vender, tudo isso na surdina. Não gosto dessa brincadeira de gato e rato.
— E isso me leva a uma outra pergunta… Muito comentada nas redes sociais, por sinal. Raimunda, imagino que você tenha conseguido guardar uma boa quantidade de dinheiro para si própria, sim?
— Aham, milhões com uns três dígitos.
— Nesse caso, como a senhora gasta seu dinheiro? Como eu disse, todos sabem que você é. Creio que não tem como você ir num bom restaurante ou ver um filme no cinema sem chamar atenção indesejada.
— Pois é, acaba sendo um pouco incomodo, mas tudo se dá um jeito. Se eu quero muito comer num restaurante, eu lavo a mão do dono para ele reservar o local só pra mim por algumas horas. Se eu quero ver um filme, eu consigo a cópia digital antes mesmo de chegar no cinema. Mas sabe como eu realmente prefiro gastar meu dinheiro?
— Como?
— Retribuindo a população.
— Pera, como é?
— Eu acredito muito naquilo de, “a sociedade nos molda”, sabe? Quer dizer que os merdas que eu mato, isso é, o meu ganha-pão, tudo isso é causado pela sociedade. E eu retribuo isso; sei ser grata. Então pego meu dinheiro suado e injeto na veia da sociedade. Clubes? Bares? Museus? Escolas? Praças? Pode apostar que uma parte do investimento veio de mim.
— Isso é… Uma revelação bombástica. Tem noção que isso poderia colapsar o sistema econômico, não é? Seria um escândalo do mais alto nível…
— Nah, não seria.
— Hã?
— Sabe, mesmo que eu revelasse cada lugar que investi o meu dinheiro sangrento, nada mudaria, pois… bem, que dinheiro não é? É bem simples: o crime manda nessa cidade, e eu, mando no crime. EU sou a porra do crime.
— Então, está afirmando que você é quem manda nessa cidade.
— Pode apostar que sim. E aí, entra o x da questão, o que fez você vir querer me entrevistar: os meus ataques políticos. Nesse caso, andei pensando um pouco. Eu disse pros meus subordinados que estava puta, pois os líderes tinham uma recompensa maior que a minha… Mas não foi bem isso.
Terminou de beber a garrafa toda de uísque, e após olhar um pouco a ela, a deixou cair no chão sem ao menos pestanejar. O coração de Nátalie estava a mil.
— Fiquei puta, pois o dono de Orfenos e o dono de Benzaiten vieram pra cá… e nem ao menos me convidaram pras negociações? Achei isso um desaforo…
A jornalista engoliu a seco, precisava fazer uma observação.
— Você parece acreditar que é invencível.
— Pode apostar que eu sou. Nátalie, pode me cobrar daqui a vinte anos: eu não vou morrer pra tiro na cabeça, não vou morrer pra tiro no coração, envenenamento ou qualquer coisa assim. Eu vou morrer porque vou estar entediada demais, e aí, bem, não vou curar o eventual câncer de pulmão que vou ter.
— Tem certeza disso? Existem muitos gunslingers nesse mundo, algum deles deve…
— Bom, nenhum desses outros gunslingers sou eu. Eu já estou nesse ramo há quase vinte anos e eu não cheguei perto da morte nenhuma vez. Talvez eu não vença todas, mas bem… perder, nunca perdi.
— E qual é o seu ideal? Qual a razão de fazer tudo isso?
Raimunda foi ao canto da sala e pegou sua slinger encostada na parede. Colocou ela sobre a mesa e, em seguida, sentou-se em frente a câmera.
— Eu não faço nada por uma razão específica ou ideal específico. Eu faço o que eu quero e não faço algo quando tenho um motivo para não fazer. É simples assim. Eu posso.
— Como tem tanta certeza que isso continuará?
Raimunda deu um sorriso e uma leve risada. Seus olhos afiados miraram a lente da câmera, atravessando a tela e chegando com toda a força a Natálie.
— Porque eu matei Atlantis Dayone. Mesmo assim… estou fazendo uma entrevista. E ela acaba aqui.
Raimunda levantou-se e for até a porta, parando logo a frente. Virou-se e olhou para a jornalista, que ainda estava suando frio. Decidiu acalmá-la com uma única frase:
— Foi bom te conhecer, Natálie. Vou ver de fazer a mensalidade das aulas de violão do seu filho ficar mais em conta.
E sem esperar resposta, abriu a porta e saiu.
Sua volta ao quartel-general da Wild Hunt foi tranquilo. O céu nublado com alta previsão de chuva fez que aquela madrugada fosse tranquila de se andar, não precisou de carro, muito menos de disfarce. Ao chegar lá, foi direto ao bar ver se tinha algo novo para caçar.
Mas para sua surpresa, o mural de caça as recompensas ainda não tinha sido atualizado.
— Pinga, Pinga, Pinga… Se eu te pego… — Após dar um suspiro longo e pegar uma garrafa de vodca no bar, foi até a boa e velha impressora da Wild Hunt. Apertou os únicos botões que não estavam empoeirados e o som caracterismo começou.
Foram longos dois inteiros minutos para todos os papéis serem impressos. Raimunda tirou os cartazes e examinou, um a um, jogando fora aqueles que não eram interessantes.
— Zé-ninguém… Maria-ninguém… Recompensa muito baixa… Hã? — Algo chamou sua atenção. Não era um cartaz comum, não se tratava uma recompensa de uma pessoa, e sim de um grupo inteiro. E o prêmio não podia ser mais interessante:
“Carreta Fogueteira — Viva ou morta — 50.000 likes”
. . .
Era um raro dia de chuva em Romaniva. A água acumulada nos céus cai com pouca força pelas cidades. Era ácida, quase corrosiva. Poucos eram aqueles que se aventuravam pelas ruas sem estar devidamente trajados e equipados. Independente disso, havia uma característica que unia a todos: estavam cabisbaixos e limitados, em outras palavras, estavam com medo.
Os sentimentos que carregava em seu peito não poderia ser muito diferente do que da multidão. Algo pesava em si e fazia sua cabeça se sentir mais leve, como se bastasse apenas um sopro de vento mais forte para voar pelas nuvens negras.
Quando entrou no estabelecimento, o sino da porta ecoou pelo local, chamando atenção da única pessoa que estava ali. Trocaram olhares, como se tivessem chegado a um consenso sem trocar palavras. Quando se sentou na cadeira em frente ao espelho, Axel tirou a toca. O cabeleiro não pode falar outra coisa:
— Caralho.
— Tá muito ruim, mano? — perguntou Axel.
— Acho que a maioria das pessoas iria falar que um careca tem um cabelo mais bonito que o seu. O que rolou?
— Eu bati a cabeça, aí bem… tiveram que raspar pra costurar. Você é o melhor dos melhores, tem conserto?
— Posso te dar uns estimulantes e em uma semana deve ter cabelo o suficiente pra eu fazer o seu corte, mas…
— Fora de questão. Não curto essas paradas, sabe disso. Preciso de um corte novo.
O cabeleireiro olhou ao redor, fez caras e bocas enquanto pensava sobre aquilo. Pegou de uma arquibancada um pequeno álbum de fotos, contendo todas as referências que precisava. Folhou o álbum um pouco e, após alguns minutos de pesquisa, mostrou uma para Axel.
— Dá pra meter o moicano.
Axel engoliu a secura de sua boca e, relutantemente, concordou com a cabeça. Para ter certeza que estava certo de sua decisão, disse: — mete bala.
. . .
Desde que tinham chegado a Romaniva, o grupo Carreta Fogueteira pouco fez além de dormir. A Carreta, embora bastante danificada, ainda servia de abrigo para os desabrigados e, principalmente, como uma fortaleza para a chuva de lá fora.
Quando acordaram, ficaram em silêncio. O clima — o de humor, e não o do mundo — não estava bom. As notícias eram sempre as mesmas:
“Príncipe Democrata, Atlântis Dayone, segue desaparecido desde o ataque ao navio da Comissão Diplomática de Orfenos. Governo de ambas as cidades ainda não se pronunciaram sobre seu paradeiro.”
Até mesmo uma nobre de Orfenos tão alheia ao jogo político sabia o que isso significa: ele estava morto. E pior ainda, não estava conseguindo criar contato com a família. Não por problema técnico, e sim pelo simples fato que não conseguia. Seus dedos não obedeciam, não conseguiam completar a difícil tarefa de apertar as teclas e destruir a esperança que restava.
Desde então, ela dormiu. Sob o combinado que só deveria ser acordada se uma boa notícia viesse a tona.
Mas a verdade era que isso não era a prioridade de Baret.
— Não, não! — Desesperada, Baret começou a digitar no notebook o mais rápido que podia, mas não foi o suficiente. — Merda…
— O que foi? — perguntou Quincas, que estava sentado ao seu lado.
— Perdi um cliente. A gente precisa de trabalho pra pagar o conserto da Carreta, mas… Parece que tá circulando alguma coisa da gente que tá fazendo as pessoas ficarem ainda mais relutantes em nos contratar.
— Mais? Não é só por sua causa? Sem ofensa.
— Não, parece que não é só por minha causa — respondeu em tom frustrado — mas eu to sem paciência para buscar isso. Eu desativei minhas redes sociais, então me faz o favor e procura.
Quincas confirmou com a cabeça e tirou do bolso o seu celular. Em vez de ir pelo aplicativo, foi pelo navegador. Não demorou mais do que cinco minutos de pesquisa para achar um vídeo que estava pouco a pouco se espalhando.
— Ei, isso é…
— É quando a gente foi atacado no meio da rua! Que porra é essa?
Procuraram mais um pouco, até acharem o que parecia ser o post original. A “notícia”, por assim dizer, dizia algo que Baret só podia chamar de calúnia: “Carreta Fogueteira inicia tiroteio em rua pública e atira em civis”.
— Que porra é essa?! Iniciar tiroteio?! Atacar civis?! Tá tudo errado!
— Pois é! — Quincas concordou com a cabeça. — Eu só tava salvando a nossa pele!
— Pera… eu conheço esse perfil. É, mudou de foto, mas reconheço essa maquiagem de longe. Essa puta.
Quando Baret apontou para a foto, Quincas olhou interessado: era uma mulher de corpo violão, cabelos negros. A pele aparentava ser clara, mas pouco conseguia identificar, pois cada centímetro de pele exposta era coberta por uma densa maquiagem. Usava um vestido curto, ao estilo maid. E pela foto de perfil, era tudo que podia dizer.
— Qual o problema dela?
— É uma vloger que não é vloger, ela só fica falando sobre treta dos outros enquanto faz os seguidores punheteiros fazerem tudo que ela quer. Sabe quantos vídeos ela fez sobre mim?! CINQUENTA E TRÊS VÍDEOS! Em apenas uma semana! Eu devia saber, ela não vai largar o osso tão fácil!
Quincas desceu um pouco o post e foi nos comentários. Uma chuva de ódio e mentiras.
“Eles atiraram contra o carro da minha tia! Ela foi hospitalizada e tá na beira da morte!”
“O meu carro mudou de lugar e depois bateu. Cinquenta mil de preju! Como q vou viver carai????”
“Eu tava prestes a pedir minha ficante em namoro, mas o barulho de tiro me assustou e acabei mandando nude da minha outra ficante pra minha ficante que eu ia chamar em namoro. Agora estou sem as duas 🙁 ESPERO QUE ENFIEM UM ELEFANTE NO CU DESSA CARRETA DE MERDA!”
Após ver comentários que não eram nem um pouco melhores do que leu, Quincas desligou o celular e colocou no bolso, jurando a si, pelo bem da sua autoestima, que não iria olhar mais.
— Agora entendeu, né?
— Pô, o povo tá exagerando um pouco… eu não atirei em ninguém, e só acertei a carroceria… Não tem como mais de vinte pessoas terem levado algum tiro…
— Eles contam mentiras! Porra… Enquanto estiver on, a gente nunca vai achar trabalho. Não vamos dar a sorte de achar uma segunda Émile…
— E se… a gente pedisse com educação, sabe, pra essa… Qual o nome dela?
— Kawadark.
— Pedirmos com educação pra Kawadark parar de nos perseguir?
Baret deu uma risada alta. Se levantou do sofá da Carreta. Pegou o seu coldre, seu revólver e um par de munição. Indo até a porta, olhou pra Quincas.
— Eu vou ir encher a cara. E antes que pergunte, não, não quero sua companinha. Preciso de um tempo. Se alguém perguntar de mim, só diz que tô indisponível.
— Mas nem fodendo! — Quincas subitamente levantou do sofá e apontou o dedo para fora. — Eu preciso dum drink! Já tô há uns dias sóbrio e isso tá me deixando lento, você viu o que aconteceu com aquela atiradora, né?! Então eu proponho que nós dois vamos beber juntinhos e pensar numa solução mais juntos ainda.
Baret não respondeu de primeira, ficou surpresa com Quincas se impondo de tal forma. Se encostou na parede e respondeu:
— E quem que vai cuidar da Carreta?
Quincas ficou quieto e direcionou seu olhar para o quarto, onde Émile estava dormindo.
— Ah, para, não tá falando sério, né? A gente não vai acordar ela só pra isso!
— Pô, e quem disse em acordar? Nós dois saímos, tomamos um drink rápido, só pra esquentar o estômago. Aí pedimos para viagem e voltamos. Tudo numa boa, saca? A Émile vai estar aqui e, se der qualquer problema, ela vai acordar!
— Você quer muito uma bebida, hein?
Quincas sorriu e deu dê ombros. Com a voz mansa, respondeu:
— Digamos que eu quero fazer um trabalho bem feito, e por eventualidade, eu trabalho melhor depois de uma bebida. Além disso… Se for num lugar cheio de gente, eu te garanto: vou conseguir todas as informações que a gente precisa.
— Bom, nesse caso, acho que não tem problema.
— E desde quando tomar uma deu problema? Vamos, precisamos dessa folguinha!