Capítulo 14 (Parte 2): Troca-troca
O sorriso leve de Émile abaixou lentamente, piscou algumas vezes e pensou, muito, se tinha ou não ouvido direito. Após muito pensar, disse:
— E-eu preciso me preparar psicologicamente, pelo menos por um dia. Na verdade, pensando bem, uma semana…
— Qual é, não vai ser tortura de fato, eu acho… Vai ser um interrogatório só, pra saber das coisas, sabe? Tenho que ter uma gunslinger comigo pra impor medo, e infelizmente, você é a única com bastante munição!
— Mas meu feitiço é inútil se não tiver outro gunslinger comigo!
— Shhh! — Baret colocou o dedo sobre os lábios de Émile. — Tá tudo bem, eles não precisam saber.
— Pois é, Émile, tá tudo bem! — Quincas tentou acalmar-lá. — Não é tão difícil, só ficar do lado da Baret e fazer cara de má.
— Fácil falar né, seu trabalho é dormir!
— Pô, sabe o quão difícil vai ser dormir? Nessa cidade com cheiro de lixo, capaz de ter um tiroteio a qualquer momento? Não é tão fácil assim!
Émile desistiu de argumentar. Podia apenas torcer que a interrogação ocorre-se bem, e mais ainda, que ela não tivesse que sujar suas mãos. Ainda estava chocada com tudo aquilo, mas sua mente não permitia pensar demais, como se soubesse o risco que estaria tomando.
Baret e Émile foram para fora, onde os sucateiros estavam amarrados, desmaiados, fritando no sol quente de meio-dia.
— Então… como que a gente vai fazer? — Émile questionou, mas Baret não respondeu de primeira. Pegou um dos sucateiros, um homem baixo e calvo e o colocou na sombra. Levou alguns chutes para ele acordar de fato.
— Hã…? Que… que… Ah! Merda. — Vendo as duas mulheres em sua frente, o sucateiro sabia na hora o que estava prestes a acontecer. — Olha gente, e-eu não sei de nada!
— Você nem sabe o que iriamos perguntar.
— É, mas se eu tivesse que adivinhar, são da gangue dos Varjões, né não? Ou melhor! Devem ser uns gunslingers contratados por eles para nos matar sem ninguém saber! Eles são uns…
— A gente não é de gangue nenhuma.
— Né não?
— Não.
— Então por que invadiram nosso território? Com portal e aquela máquina de guerra? Tá doida, é?
— Se vocês não atacassem de uma vez e deixassem a gente explicar, facilitaria! Mas foda-se, agora é tarde. Sou eu que faço as perguntas aqui, então, primeiro: onde diabos estamos?
— No pior pedaço do mundo, certamente. — Baret deu um chute nele, após um grito de dor, corrigiu. — Aos arredores de Benzaiten! A gente chama a região de Sucateão!
— Que nome — Émile comentou — É um lixão tão grande assim?
— Porra, você não iria acreditar! Toda vila nessa porra de região é um lixão enorme. Por causa disso tem um monte de gangue, um monte de guerras…
— Já entendi… e vocês, são que grupo?
— Gangue dos Radabu.
As duas se olharam após escutarem o nome estranho. O homem, por outro lado, estranhou ela estranhando. Baret continuou o interrogatório.
— E quem é essa tal mãe?
— É a mãe, ué.
— NÃO FODE! Eu quero saber quem de fato é! É a líder de vocês? Qual são os objetivos? O que ela faz?
— Tá, tá! Calma, moça! Só tentei te matar, não precisa dessa grosseria… — Outro chute. Após um gemido de dor, continuou: — A mãe é nossa líder. O que ela quer… bem, eu não sei exatamente. Ela virou líder faz pouco tempo, sabe? Matou o pai, então acabou tomando o poder pra ela. Mas ela é uma gunslinger! Isso eu sei!
— Hmm… tendi, beleza.
Sem mais palavras para serem ditas, Baret deu uma coronhada no pescoço do homem e o botou para dormir mais uma vez. Sentou numa cadeira de balanço que havia ali próxima à casa e pensou. Émile perguntou:
— Alguma… coisa boa? Sabe, do interrogatório?
— Nada de útil. — Baret deu dê ombros. — O que me preocupa é se o Axel morrer, ou só não acordar tão cedo. Nós temos comida, mas não muita água. E com a Carreta quebrada do jeito que está, andar com ela não é possível, aí fode a locomoção…
— Entendi… Então iriamos precisar consertar a carreta de alguma forma, né?
— É. E nenhum de nós sabe realmente como fazer isso, ou quais peças precisamos… Só que eu tenho uma ideia.
— Qual?
— Tipo, você viu aquela armadura, não viu? Tem que ser muito foda pra conseguir fazer uma dessas! Então, eu tava pensando… Se a gente conseguir convencer eles a consertarem a Carreta, a gente pode dar o fora daqui, ir pra algum lugar um pouquinho mais civilizado… Sem contar a slinger da tal mãe, talvez tenha algum número!
— Tem certeza que vai funcionar?
— É claro que vai, agora bora, temos mais gente para interrogar!
. . .
Após longas horas de interrogação, planejamento e descanso, um plano foi traçado: passar aquela noite naquela vila até todos os gunslingers do grupo recuperassem todos os seus recarregamentos, e dar tempo para Axel acordar.
Já tinha anoitecido quando Quincas acordou e tomou o turno de guarda, garantindo que os sucateiros não fariam nenhuma gracinha, enquanto era o turno de Nil.
Baret estava um pouco mais afastada do grupo principal, numa das casas da vila. Passou o pouco tempo que livre que teve para coletar pregos para poder usar com as armas dos sucateiros. Aquelas armas não eram as mais fortes do mundo, mas bastariam para economizar munição. Sentada no chão de madeira, organizava o armamento.
— Ok… cem pregos. Dando uma para Quincas, Nil e Arya, é 33 para cada um… Talvez eu deva usar um também? Mas aí diminui para vinte e cinco cada… Se eu achar mais, talvez dê para fazer isso…
Antes de terminar de organizar as armas, Baret subitamente parou. Sentiu-se zonza, a mão começou a tremer. Sintomas do envenenamento, que ocorria de tempos em tempos desde o churrasco.
— Porra, hein… Meu organismo absorveu rápido essa merda, era para ter demorado algumas semanas pelo menos…
Fechou o punho e controlou suas tremedeiras a força. Assim como viam rápido, os sintomas também desapareciam rápido. Em outras palavras, Baret era capaz de ignorar aquelas sensações ruins na base da força bruta.
— Você está bem?
Um arrepio passou pelo corpo de Baret, que se virou o mais rápido possível.
— Arya! Que susto! Caramba mulher, tu não tem presença não? Não te ouvi se aproximar!
— Ah! Desculpa! Eu só… vim conversar. Mas você está bem? Aconteceu algo?
— Hã… Acho só que o almoço não me fez muito bem! Sabe, fiquei com uma dor de estômago, nada de mais.
— Eu posso ver se tenho algum remédio, eu trouxe uma bolsinha. Acabou caindo tudo, mas deve estar lá ainda.
— Não prec… Quer saber? Aceito, mas depois. Quer conversar sobre o quê? Alguma ideia para a operação de amanhã?
Arya se aproximou mais um pouco e sentou-se no chão de madeira. Frente a frente, desviou um pouco o olhar e hesitou em começar a falar, até tomar coragem.
— Queria só conversar um pouco para nos conhecermos melhor. Eu sei que minha entrada na Carreta foi meio súbita, então… Acho que quero ficar mais em sintonia com você? Algo assim.
— Ah, entendi… Bom, você se meteu numa confusão, né não? Sabia que as coisas não seriam as mais normais do mundo, mas rapaz, não esperava que seria assim logo no primeiro dia…
Arya deu uma risada, negou com a cabeça e respondeu:
— Eu sabia onde estava me metendo. Cedo ou tarde algo desse tipo iria acontecer, não é? Fiquei preocupada mesmo com a Émile, só que ela está até que lidando melhor que imaginei, até salvou a pele do Quincas.
— Essa garota ainda vai ficar fodona. Só precisa andar um pouco mais com a gente. — Baret deu uma risada, mas Arya não. Sua expressão estava hesitante, relutante.
— Ela estava… chorando, agora pouco.
— Hã? Quê? Por quê?
Arya levantou-se do chão e se aproximou de uma das janelas. Baret fez o mesmo. A janela dava visão para o grupo que Quincas estava vigiando, junto a ele, estava Émile, conversando.
— Choque, eu acho. O irmão dela está em perigo e ela acabou de presenciar um massacre. É normal, acontece quando se presencia pessoas morrerem pela primeira vez. De certa forma, ela foi responsável pela morte daquele cara com armadura.
— É mesmo? Nunca tive isso. Dito isso, eu nasci em Romaniva, então acho que sempre estive acostumada…
— Hey, Baret…
— O quê?
— Quantas pessoas você já matou?
Não esperava esse tipo de pergunta, ao mesmo tempo, Baret não ficou surpresa. Talvez, no fundo, soubesse que era uma questão de tempo até um assunto como esse viesse a tona. Ela não hesitou em responder:
— Vamos ver, foram… oito, não, nove mortes hoje. Com o Josh… dez pessoas no total, mas é questão de tempo até esse número aumentar.
— Espera, o tal do Josh foi o primeiro? Você nunca…?
— É, eu só trabalhava como professora antes, eu não era mercenária nem nada. Toda minha experiência vem de tipo, airsoft, campos de tiros e um monte de vídeos de gunslingers. Eu sabia que estava correndo risco quando eu desafiei o Josh, mas na minha cabeça era só uma eventualidade.
— De certa forma, é impressionante… Mas você realmente não sentiu nada ao matar pela primeira vez? Um choque, ou arrependimento?
Baret se afastou um pouco, começou a andar pela casa sem rumo aparente, com a mente nas nuvens. Arya apenas acompanhava com um olhar curioso. Se encostou na janela do outro lado da casa, olhando ao céu noturno, as duas luas que iluminavam a noite. O brilho branco e levemente azulado de cada um dos corpos celestes contrastava com seus olhos.
— Se eu tenho algum arrependimento, foi o de ter sido descoberta. Ao mesmo tempo… Se eu não fosse cancelada, eu nunca tomaria um passo tão grande quanto a Carreta Fogueteira. Não acredito em destino, mas as coisas são como são. Então nunca iria trocar o passado certo por um presente alternativo.
Direcionou seu olhar para Arya, que respondeu com os mesmos olhos.
— Então, Arya… Eu não me arrependo, e nem vou. Esse é o tipo de pessoa que sou, esse é o tipo de grupo que a Carreta Fogueteira será. Me desculpe se for demais para você, e eu entendo caso queira embora depois disso.
Os olhos vermelhos de Arya foram bloqueados pela sua franja. Olhando para o chão, e em uma voz fraca e hesitante, Arya disse:
— Eu já matei pessoas antes.
Baret não reagiu.
— Faz alguns anos. Eu saí de uma balada com uma amiga e fomos voltando a pé para casa. No caminho, fomos abordadas por alguns homens e bem… Acho que pode imaginar quais eram as intenções dele. — Baret confirmou com a cabeça. Arya continuou: — Naquele momento, algo despertou dentro de mim, um instinto… E… Eu dei um jeito. Quando eu vi, estava coberta de sangue.
— Como se sentiu?
Arya tentou responder, mas não conseguiu pôr em palavras, elas não saim de sua garganta. Após muito forçar, vomitou as palavras:
— Quê não havia mais volta. — Sua respiração ficou pesada, o olhar tornou-se quase de vergonha. — Acho que… De certa forma, eu te entendo, e que você é capaz de me entender.
Baret não respondeu de primeira. Juntou os pregos e as armas do chão e colocou tudo numa caixa. Foi até a porta e parou ali, após alguns segundos de silêncio, respondeu:
— Sendo sincera, eu acho você tá falando merda. Não me leve a mal, não é algo ruim de fato. Eu só… Não acho que é tão fácil as pessoas se entenderem. — Sua voz não tinha hesitação. — Hora de acordar o Nil e ir dormir um pouco. Você deveria também, Arya. Boa noite.
— Boa noite…
Baret deixou a cabana, e Arya ficou ali, encarando a janela. Olhando ao céu, o seu lado não podia ver a lua, apenas o imenso escuro.
. . .
— Mãe! Mãe! — Um sucateiro corria pela fortaleza de lixo, estava baleado. Atravessou a entrada e foi direto a sala do trono, onde uma mulher, de roupas de vaqueira e um rifle em mão, estava, sentada em um trono.
Ela fitou seu olhar a ele, sem mudar a expressão de tédio. Alguns dos guardas o pararam antes de se aproximar demais, mas com apenas uma gesticulação de mãos, a mãe permitiu que ele passasse.
— O que foi?
— Mãe… Ramona. — O homem estava sem fôlego, após respirar um pouco, continuou: — Nossa base ao sul foi atacada! Tinham vários gunslingers, fomos massacrados! Corri o mais rápido possível para conseguir escapar e avisar!
— Atacada? — Um dos outros homens falou. — Impossível! Sir Localot estava nela! Ele é um dos nossos melhores homens, como foram mortos com tanta facilidade?
— Eram vários gunslingers! Eles apareceram do nada com um portal, bateram e aí… Bem, foi um massacre!
Quando ouviu aquele detalhe, o olhar entediado de Ramona se foi com uma expressão de surpresa. Levantou do seu trono e segurou a slinger com força, com uma voz autoritária, ordenou:
— Peguem todos os soldados. Vamos matar esses filhos da puta.
“Sim, mãe!”, os soldados gritaram. Ela não esperava que fosse tão cedo, mas tinha certeza: sua vingança viria com toda a força.