Capítulo 14 (Parte 1): Troca-troca
Foi um pensamento rápido, quase instintivo. Quando todos aqueles selvagens apontaram suas armas de prego para Baret, ela soltou Axel na hora e correu até o carro velho que estava servindo de barreira para tomar cobertura. Puxou a arma do coldre.
— Quem caralhos é esse pessoal?!
— Boa pergunta! — Nil estava com a slinger em mãos, disparou um de seus foguetes que logo transformaram-se em tubarões de água, atacando alguns dos inimigos. — A gente acordou escutando disparos contra a carreta, não deu muito tempo para processar!
— São sucateiros! — Quincas disse após recarregar sua pistola. Saiu da cobertura e disparou contra alguns dos sucateiros, acertando alguns em cheio. Voltou a cobertura logo em seguida, com um problema: — minha munição tá acabando. Tenho só um mais um recarregamento.
— E a sua outra pistola? — Nil questionou, recarregando o lança-foguete ao som dos disparos e dos gritos desesperados dos sucateiros sendo massacrados pelos tubarões.
— Perdi ela na batida.
Baret olhou de relance. Embora houvesse muitos corpos de sucateiros que já tinham sido mortos naquele meio tempo, ainda havia cerca de trinta deles; sem contar aquele grandalhão que tocava música com sua guitarra lança-chamas.
Arya e Émile também estava tomando cobertura. Mas não faziam nada em particular, tentavam apenas não serem acertadas. Émile pelo menos estava com a sua própria slinger em mãos, mas estava tão trêmula que acertar algo seria impossível.
Obviamente, Axel continuava no chão desmaiado, sangrando continuamente. Por algum milagre não tinha sido acertado por nenhum tiro, e nem seria, para todos os sucateiros, era só um corpo morto.
Deu um suspiro. Não dava para ficar parada atrás daquele carro por muito tempo, precisava avançar e mais ainda, tomar atitude. Havia um corpo de uma mulher a mais ou menos alguns metros dali, se fosse rápida, poderia pegar aquele corpo e usar de escudo, pelo menos até chegar a uma das paredes.
— Beleza, quando eu mandar, avancem.
— Calma, tchê! Ainda não é segu…
— Avancem!
Ignorando qualquer sensação de perigo, Baret deslizou sobre o capô enferrujado do carro e correu até o corpo, o pegou e levantou o mais rápido possível. Seu plano deu certo: era um escudo perfeito. Os pregos, embora poderosos, eram incapazes de atravessar os corpos ou a armadura de sucata.
Nil, por sua vez, seguiu a ordem de sua chefe, disparou mais uma vez sua slinger para criar mais tubarões e, quase como uma forma de desafio, largou sua slinger para trás do carro e avançou contra seus inimigos com as mãos nuas. O soco do seu punho de aço era o suficiente para fazer eles caírem no chão e não levantarem mais. Nem mesmo três ou quatro sucateiros com suas armas de prego eram capazes de pará-lo. A diferença entre ele e todos aqueles homens eram a mesma entre um atleta profissional e uma criança que acabou de entrar no esporte.
Já Baret não tinha muita vantagem. Quando a munição do seu revólver acabou, soltou o corpo que usava de escudo e correu para dentro de uma das casas da vila. Entrou em um armário e recarregou a arma ali mesmo.
Alguns dos homens a seguiram, mas não sabiam onde estava. Conseguia ver por um pequeno buraco do armário. Segurou o revólver com força e, quando os sucateiros abriram a guarda por um segundo, Baret saiu do armário e atirou neles; cada tiro foi letal.
Não ficou parada, pulou pela janela e saiu antes que mais daqueles homens viessem.
Com apenas Quincas sendo o gunslinger tomando cobertura do carro, ou pelo menos, era o que os sucateiros achavam, eles avançaram aos montes tentando vencer com base nos números. Quincas deu um suspiro e avançou, e de forma similar a Nil, enfrentou eles no corpo-a-corpo.
Quando estava prestes a ficar cercado, utilizava os últimos tiros de sua slinger para trocar de lugar com seus inimigos. Tudo esse combate era ao som da guitarra do homem em cima de uma das casas.
Ele ignorava completamente seus homens sendo derrotados com tanta facilidade. E mesmo quando Bares atirava conta ele, nada acontecia, sua armadura era grossa o suficiente para ignorar completamente o dano dos disparos; somado a sua guitarra cuspidora de fogo que vaporizava os tubarões de água de Nil, era basicamente invulnerável.
Quando todos os sucateiros, exceto ele, foram derrotados, o seu solo de guitarra acabou. O trio se reuniu em frente ao carro que servia de cobertura, o sucateiro reclamou:
— Nem mesmo com um solo de guitarra eles ficam motivados o suficiente pra vencer?! Que desperdício! — Sua voz era apocalíptica, levemente alterada pelos aparelhos eletrônicos de sua armadura.
— Não teria esse desperdício se não tivessem aberto fogo contra gente! — Quincas respondeu — Agora, pode por favor deixar a gente em paz? Nem todos os sucateiros morreram, deixa a gente arrumar nosso carro e ir embora que todo mundo fica feliz!
— E deixar essa beleza fugir? Hah! — Pulou em direção a eles. Sua aterrizagem fez o chão tremer. Tocou uma nota na guitarra e gritou: — esse será meu presente de boas-vindas para a mãe! Talvez até me faça seu consorte se eu trazer algumas slingers para ela!
Baret deu quase uma risada da situação. Parecia estar em uma cena de filme de pós-apocalipse. O homem não ficou nenhum pouco feliz com a situação, começando a dar pequenos passos para frente.
— Arya! — Nil gritou.
— É pra já! — Sem nem ao menos precisar de instruções, Arya sabia o que fazer. Saiu da cobertura com o lança-míssil de Nil em mãos e arremessou para ele, que, com facilidade, agarrou com sua mão mecânica. Um foguete se materializou na outra mão e recarregou a arma com toda velocidade que podia.
Sem cerimônia ou frase final, Nil apertou o gatilho e não imbuiu feitiço algum. Tudo que precisava era explodir aquele cara em pedaços.
Mas não aconteceu o que esperava.
O homem foi acertado precisamente pelo foguete, e a explosão ocorreu. Quando a fumaça abaixou-se, ele estava intacto, com uma leve energia azul saindo dos aparelhos eletrônicos e correndo por sua armadura de sucata, bastou isso e proteger o rosto com seus braços para suportar o foguete completamente. Todos ficaram sem palavras, até subitamente voltarem quando ele apontou a guitarra lança-chamas para eles.
— CORRE! — Ordenou Baret.
Apressaram o passo no mesmo momento que a saraivada de fogo saiu. Ele corria atrás. Émile e Arya também não ficaram paradas, saíram da cobertura do carro e foram o mais longe possível. O sucateiro focou especificamente Quincas, que era dentre os três, o mais lento.
Incapaz de criar mais qualquer munição para usar seu feitiço, Quincas não poderia trocar de lugar e escapar. Tentava correr o mais rápido que podia, mas a batida da Carreta tinha lhe machucado o joelho, correr estava complicado.
Sabendo ser questão de tempo até Quincas ser acertado pelas chamas, Émile parou de correr e mirou sua slinger contra o sucateiro. Tinha certeza que era incapaz de causar qualquer tipo de dano contra ele, mas talvez… seu feitiço seria útil.
Atirou. Mesmo a mais de vinte metros de distância, acertou e cheio nas costas do sucateiro. Ele parou de correr por um segundo para averiguar de onde vinha o disparo, e voltou a correr. Émile não ficou parada, apontou para a montanha de sucata que havia ali próxima e disparou contra um lixo aleatório do seu cume.
Quatro segundos após acertar o lixo, o sucateiro não estava mais atrás de Quincas. Quando se virou para averiguar, apenas achou uma TV quebrada. Um som vindo da pilha de lixo atraiu o olhar de todos, era o sucateiro tentando se equilibrar por cima de todo lixo, e falhando miseravelmente.
Foi uma queda grande. Rolou e rolou sobre a sucata e lixo, até cair com toda a força no chão. Sua guitarra quebrou-se em pedaços, mas sua armadura mantinha-se intacta, com aquela mesma energia azul atravessando a sucata.
Levantou-se com certa dificuldade e respirava pesadamente. Todos da carreta estavam confusos com o que tinha acabado de acontecer, só que não tinham o tempo para pensar. Nil tomou a oportunidade de que a arma dele estava quebrada e avançou contra ele.
Ainda que fosse um homem parrudo e com uma armadura que o deixava praticamente invulnerável, era um lutador corpo a corpo tão incompetente que não conseguia acertar um único golpe em Nil. Bastaram alguns golpes para ele entender como aquela armadura funcionava de fato: aqueles componentes eletrônicos emitiam alguma espécie de barreira semi-visível que impedia objetos se aproximassem com facilidade, como se fossem dois ímãs de mesmo polo tentando se aproximar.
Tudo que precisava fazer era socar e, na medida que a barreira tentava impedir o braço de se aproximar, forçar mais ainda. O soco não causou dano de toda forma, mas Nil conseguiu encostar na armadura de fato. Agarrou um dos componentes elétricos e arrancou com toda a força.
O sucateiro tentou se afastar, mas choques elétricos e faíscas voando o faziam gemer de dor. O aparelho que Nil arrancou destruiu o equilibro de sua armadura. Tentou desesperadamente tirar a armadura, mas os choques ficaram mais e mais fortes até subitamente cair no chão, trêmulo.
— Tira a armadura dele! — Quincas disse ao seu aproximar.
— Hã? Por quê?
— Ele de longe deve ser o que tem mais informação!
Tarde demais. Aqueles míseros segundos de conversa foram tempos o suficiente para o cérebro do sucateiro queimar. Estava morto. Se reuniram logo em seguida.
— Então… e agora? — perguntou Quincas.
— Bom, em primeiro lugar… acho que é melhor a gente tentar ajudar o Axel. — Nil apontou para ele, que continuava caído no chão. Arya correu o mais rápido possível, deu uma olhada nele e respondeu o mais rápido que podia:
— Alguém pega algum pano! Algo que seja grosso o suficiente!
Quincas saiu correndo até a carreta. Não precisou abrir nenhuma mala ou gaveta, pois todas tinham sido abertas com a batida. Pegou pelo menos cinco roupas diferentes para ter certeza que seria o suficiente e correu de volta.
Arya fez uma cara esquisita quando viu o punhado, mas preferiu não comentar. Colocou a cueca box na cabeça de Axel como primeira camada de tecido, e em seguida, amarrou outras duas camadas: uma camisa de manga longa branca e uma calça preta de acadêmia.
— Não está bonito… mas acho que vai parar o sangramento — comentou Arya. Émile, até então com o olhar desviado por não estar acostumado com aquelas quantidades de sangue, perguntou desesperada:
— ESSA NÃO É MINHA CALÇA?!
— É? Não sei dizer. Baret, é sua?
— Eu não. A minha é de cor rosa.
Émile soltou uma lágrima quando via o preto da calça ficar lentamente avermelhado. Os outros soltaram um suspiro de alívio, mas sabiam que não estavam seguros ainda.
— Novamente, e agora? — Quincas questionou. Baret bateu o pé no chão algumas vezes e pensou.
— Tá… primeiro, o Axel continua sangrando, a ferida é profunda, então precisamos costurar esse negócio. Arya e Émile, vocês duas vasculhem as casas e procurem alguma coisa que sirva pra tratar essa ferida. Um Kit MED, um kit de primeiro socorros, ou só linha para costurar, tanto faz. Quincas e Nil, procurem cada sucateiro que ainda esteja vivo e traga pra cá, eu vou procurar uma corda ou alguma coisa para amarrar eles.
— E se não tiver corda o suficiente pra todos? — Quincas parecia preocupado, e tinha motivo.
— Ai a gente garante que tenha corda o suficiente, se é que me entende. Chega, bora pro trabalho!
Deixaram Axel sob uma sombra de uma casa e começaram a procurar. A vila era pequena e a maioria das casas já tinham sido pilhadas, dificultando ainda mais a busca das mulheres da Carreta. Após meia hora procurando, Baret achou apenas três metros de corda podre; Arya e Émile conseguiram o milagre de achar um kit de costura incompleto, mas com material o suficiente.
Quincas e Nil acharam cerca de uma dúzia de sucateiros vivos, os outros quase quarenta sucateiros tinham morrido. Foi um banho de sangue.
Reuniram-se novamente na frente da casa em que Axel estava deitado. Arya estava se preparando para costurar o ferimento quando percebeu. Fez uma cara feia e falou:
— O cabelo… a gente tem que dar um jeito de raspar.
— O porra! Por quê?
— O cabelo pode atrapalhar. Vocês não têm um barbeador elétrico? Ou sei lá, no pior dos casos, um isqueiro.
— Eu tenho um barbeador, não precisa queimar o cabelo do coitado. — Nil foi correndo até a carreta e procurou pelo caos que estava o motorhome, após minutos procurando, achou o aparador embaixo de alguns sutiãs. Voltou para o grupo e entregou para Arya.
Ela engoliu a seco, já conseguia escutar os xingamentos de Axel e sentir o seu mais puro ódio. Disse um “desculpe” baixinho e começou a raspar o cabelo do lado da cabeça dele.
O resto do grupo preferiu não olhar. Baret amarrou todos os sucateiros sobreviventes, que para sorte deles, teve corda o suficiente. Quincas e Nil foram ordenados a se livrar dos corpos restantes, “ou pelo menos longe o suficiente para não sentirmos o cheiro de cagada e decomposição”, como instruiu Baret.
Duas horas depois, após um longo e cansativo trabalho, reuniram-se em uma casa e almoçaram a comida enlatada que estocaram.
— Eu tava pensando… — Quincas falava de boca cheia. — Eram… umas catorze horas quando a gente saiu, né não? Mais uma meia hora do engarrafamento, uns dez minutos de perseguição, mais uns vinte desse combate…
— É… e que quê tem, Quincas?
— Pensa comigo Baret: se com tudo isso que aconteceu, o sol só chegou no topo do céu agora pouco, quer dizer que fomos para o oeste, longe o suficiente para o fuso horário mudar. Estamos numa vila lixão, então precisa ser perto de alguma cidade grande… a gente deve estar nos arredores de Benzaiten, talvez pouco depois do fim da área de influência dela.
Todos ficaram em silêncio por um segundo.
— O que foi, pessoal? — questionou Quincas.
— Isso foi… incrivelmente inteligente de você — Baret respondeu.
— Pois é. Não esperava isso de você — Nil complementou.
— Muito menos eu. — Tal qual Émile.
— Qual é gente! — protestou Arya. — O Quincas é bem mais esperto do que vocês imaginam! Talvez não seja o mais sábio, mas isso só prova que deveriam esperar mais dele!
— Pois é! To me sentindo meio magoado agora!
— Tá, tá, esquece isso. Não importa muito onde estamos. Quando o Axel acordar, ele vai fazer um portal e a gente volta pra Romaniva.
— É. Eu preciso ver o meu irmão! Tentei ligar… mas não tem sinal. Maldita Raimunda, não sabe largar o osso não?!
— A recompensa pela sua cabeça deve ser bem grande para estarem insistindo tanto em tem de sequestrar. — Émile apontou a língua para Nil quando ele disse isso, mas não se importou, deu uma risada irônica e tomou o caldo do seu pêssego enlatado. — Como fez aquilo? De teleportar o cara? Pareceu o feitiço do Quincas.
Émile ficou um pouco retraída, envergonhada. Comeu mais uma colherada de milho e deu um gole na sua garrafinha de água em forma de porquinho.
— Meio que é. Sabe, meu feitiço é… herdar outros feitiços. Se um gunslinger usa algum feitiço perto de mim, eu consigo armazenar esse feitiço na minha munição e usar eu mesma. O Quincas usou a troca dele três vezes quando tava lutando contra aqueles caras, então… eu tinha como usar até três disparos com esse feitiço.
— Que legal! — Quincas sorriu. — Tem muito potencial para fazer umas coisas bem maneiras! A gente podia ser chamado de “Dupla Troca” e aí…
Calou-se quando percebeu que ninguém estava interessado nas ideias dele. Após alguns minutos de alimentação em silêncio, Arya questionou:
— Quincas, você disse antes que esses caras são sucateiros, né? Quem eles são, exatamente?
O velho coçou o pescoço um pouco e desviou o olhar, pensando em como explicar da melhor forma.
— É meio que um termo generalizante, saca? Tecnologia não é tão comum em algumas vilas, então armas modernas e munição podem ser difícil de encontrar. Alguns grupos acabam indo para esses lixões pegar tudo que encontraram e montam seus equipamentos com base nisso. Dai o nome. Mas cada grupo é um grupo. — Deu uma garfada e colocou um pedaço de sardinha na boca, continuou com boca cheia: — Mas não faço a mínima ideia de quem seja a tal mãe ou o que querem.
— É só perguntarmos quando recobrarem a consciência. Não que eu me importe muito, só quero voltar pra Romaniva e repensar um pouco minhas escolhas de vida. — Baret terminou de comer. Colocou a latinha no chão e começou a dar as ordens: — Ok, seguinte cambada, eles podem vir nos atacar a qualquer momento. Nil, quantos tiros você ainda tem?
— Deixa eu ver… um foguete. Talvez.
— Ah… Ok, é uma slinger de um tiro. Quincas, quantos disparos ainda tem?
— To zeradinho.
— Puta merda, ok. Émile?
— Eu só disparei duas vezes. Eu ainda tenho dezoito tiros e mais dois recarregamentos.
— Perfeito! Quincas, sua ordem é tirar um ronco e ver se recupera alguns tiros. Nil, você termina seu almoço e acompanha a Arya, depois que o Quincas acordar, é sua vez de dormir. Arya, seu trabalho é garantir que o Axel não tenha uma morte súbita. E mais importante, Émile…
— Oi!
— Você vai me ajudar a torturar nossos prisioneiros de guerra!