Thanatos: O Fardo da Honra - Capítulo 13
Caí vergonhosamente com o rosto no chão úmido da floresta. Rolei por alguns metros até parar dentro de uma grande moita de chaya. Não tinha tempo para me preocupar com pequenos machucados. Então, me arrastei e puxei tudo que estava à minha frente até conseguir espaço para correr.
Eu estava tão apavorado que qualquer barulho na floresta me fazia correr ainda mais rápido. Sabia que teria que enfrentar a fúria do ferreiro de qualquer forma, mas seria mais seguro esperar. Esdom tinha tendência a surtos de raiva, embora ele se acalmasse com o tempo.
Quase sempre conseguia conter seus atos. Entretanto, houve uma única vez em que ficou tão furioso que parecia um animal. Xingava e gritava de forma descontrolada. Foi a primeira vez que tive medo de perder a minha vida, e olha que sua raiva nem comigo era direcionada.
Mas desta vez era.
Não havia sinais de que Esdom estava no meu encalço, então alternei entre uma corrida calma e um caminhar apressado. Depois de um tempo, aceitei que o ferreiro provavelmente contornaria a floresta, mas não fiquei mais calmo por isso. Tive bastante tempo para me arrepender e pensar em fugir. Contudo, eu não tinha muitos lugares para ir.
Cheguei sorrateiramente até a entrada da minha casa, esperei por algum tempo procurando sinais que acusassem a presença de Esdom. Mas não achando, entrei pela porta dos fundos e subi silenciosamente para meu quarto.
Só quando estava na segurança do meu lar pude perceber que, na ânsia de evitar uma surra, me lancei em várias moitas, sem pensar muito. Eu tinha queimaduras e espinhos por várias partes do corpo. Lembro-me de ter pensado que teria sofrido bem menos enfrentando o ferreiro.
Uma mistura de dor e surpresa me atingiu. Pulei para frente, tentando desesperadamente me cobrir. Minha mãe me olhava com curiosidade e um leve sorriso no rosto, que logo se transformou em impaciência. Ela tinha acabado de puxar um espinho que estava profundamente encravado na parte superior da minha nádega esquerda. E esse pequeno detalhe não me deixou nada confortável.
— Para de bobagem! Sabe quantas vezes já te vi nu?
— Eu não sou mais criança, mãe!
— Não é o que parece, agora para de reclamar.
— Mas, mãe!
— Para de frescura!
Eu não tinha escolha, não conseguiria escapar dessa humilhação, mas não aceitaria de bom grado. Cada tentativa dela de procurar em uma nova parte do meu corpo era acompanhada de reclamações e tentativas de fuga.
— Aiii, mããe! — Ela estava puxando os espinhos e minha dignidade junto.
— Não… aí não.
— Espera, mãe… MÃE, TIRA A MÃO DAÍ!
— Para com isso, Kanoff. Quem mandou você entrar numa moita de espinhos? Agora aguenta!
— O que você estava aprontando?
— Eu estava fugindo do Esdom. Ele me pegou treinando com a Izi na floresta.
— Eu te avisei. Não sei de onde você tirou essa ideia maluca!
Achei melhor ficar calado.
— Agora vai tomar um banho, que você está todo sujo.
— Tá bom, mãe, mas o ferreiro está atrás de mim. Se ele chegar, diz que eu não estou.
— Você arrumou essa bagunça, agora resolva. — Minha mãe tinha essa filosofia: “toda ação tem suas consequências”, dizia ela sempre.
Depois do banho, ela passou aquela mesma pasta verde. O alívio foi instantâneo.
— O que tem nesta pasta? — Indaguei, enquanto ela colocava uma pequena quantidade no meu ombro. Não era a primeira vez que ela usava aquilo em mim. Ela sempre a aplicava para quase tudo: cortes, picadas de Maski, queimaduras. Só faltava me fazer comer essa pasta, embora eu desconfiasse do chá verde.
— Se eu soubesse, não pagaria uma fortuna para aquele maldito curandeiro. Agora fica quieto…
Antes de terminar de me lambuzar com a asquerosa pasta, uma criada bateu na porta avisando da chegada do ferreiro.
— O senhor Esdom está furioso, senhora. Achei melhor avisá-la — falou a serva, sem abrir a porta.
Fiquei tenso na hora. Minha mãe me olhou com raiva. Com toda certeza, ela me daria mais um sermão, não fosse a necessidade de responder à criada.
— Obrigada, Êlina. Peça para ele esperar. Já estamos descendo.
— Eu não vou descer!
— Vai sim, nem que eu tenha que te arrastar escada abaixo. Agora anda!
Abaixei a cabeça e acompanhei minha mãe escada abaixo.
A primeira coisa que notei foi o ferreiro, em pé, encostado na parede. Ele estava furioso. Izi, sentada ao lado da porta, olhava para baixo, envergonhada. O olhar de Esdom me preocupou.
— Esperem lá fora, enquanto nós conversamos. — Disse minha mãe.
Passei ao lado do ferreiro, mas não tive coragem de olhar para seu rosto. Meu corpo todo tremeu, era como se eu estivesse ao lado de um animal furioso prestes a me atacar. Caminhamos em direção a um pequeno banco que ficava de frente para a porta da casa. Contudo, longe o suficiente para não sermos acusados de tentar ouvir a conversa. Já tínhamos problemas suficientes.
Ficamos um bom tempo sem dizer nada. Izi, envergonhada e eu completamente agradecido por estarmos em silêncio. Eu não conseguiria eu tivesse tentado falar não sairia nada. Me sentia envergonhado por tentar beijá-la. Ensaiei inúmeras desculpas, porém nenhuma foi pronunciada.
— Me desculpa, Kan. – Repentinamente ela disse.
Fiquei sem reação.
— Isso tudo é minha culpa. — Ela acrescentou.
Olhei para Izi, que chorava baixinho. Fiquei pálido. Tive vontade de abraçá-la e dizer que tudo iria ficar bem. Mas nada fiz.
— Me desculpa, Kan. — Disse ela novamente.
— Você não tem que me pedir desculpas, eu sabia que isso poderia acontecer.
— Não! Meu pai não vai te aceitar mais como aprendiz, ele me disse. E é tudo minha culpa. Se eu não tivesse insistido em aprender a lutar, nada disso teria acontecido. — Ela abaixou a cabeça e enxugou os olhos na barra do vestido.
— Valeu a pena, agora você não é mais indefesa como a maioria das garotas da nossa vila. Na verdade, nem gostava tanto assim de ser aprendiz. E outra coisa, já sei muito. Sei até mais do que o ferreiro do porto. E você está errada. Fui eu quem te incentivei a lutar, ou melhor, fui eu quem te ataquei.
Ela ficou em silêncio, enxugando as lágrimas, como se recordasse de algo. E ela tinha mesmo do que se lembrar. Ao lado da minha casa ainda existia o casebre em que ela morou por três anos.
Na primeira vez que a vi, ela era uma pequena e suja garota. Completamente o oposto das garotas que eu estava acostumado a ver. Nesta época, o ferreiro ainda morava ao lado da minha casa em um casebre improvisado.
Quando Izi chegou trazida por uma mulher em uma carroça, não foi difícil confundi-la com um garoto. Estava imunda, seus cabelos arrastavam no chão. Não era incomum garotos terem cabelos grandes.
A mulher que viera com ela relutou em deixá-la brincando na porta, mas o ferreiro a convenceu com poucas palavras. A mulher olhou para mim com cara carrancuda e entrou relutante no casebre, meu pai estava junto. Se não fosse o urro do seu animal de montaria eu não teria saído correndo para alcançá-lo no portão. Contudo meu pai não me deu atenção, e meu interesse estava na garota que eu julgara garoto.
Aproveitando a oportunidade de poder brincar com outro garoto, aproxime sem qualquer cautela. Por algum motivo, todos os garotos e principalmente as meninas mantinham uma certa distância de mim. Eu sempre achei que era por causa de serem servos. Mas mal sabia eu que havia algo muito mais sério.
— Oi, meu nome é Kannofi. E o seu?
— Izi.
— Você quer brincar? — Ela concordou balançando a cabeça.
Sem pensar duas vezes, saltei sobre ela. Segurei sua cabeça com força, como se fosse batê-la no chão. Um grito estridente e carregado de horror me fez ficar paralisado. Eu não sabia o que fazer.Eu era ignorado pela maioria das crianças, e, quando encontrei uma disposta a me dar atenção, não podia perder a chance de ser aceito.
A mulher que chegou de carroça foi a primeira a sair da casa, gritando apavorada. Logo atrás, vieram meu pai e o ferreiro. Meu pai tomou a frente e retirou-me de cima da garota, que chorava com demasia. Ela, vendo-se livre, correu em direção à barra da mulher que a trouxe.
— O que significa isso, Kannofi? — Meu pai, como ficava muito tempo fora, quase nunca brigava comigo, deixava sempre isso para minha mãe. Mas desta vez sua voz estava séria e forte. Confesso que fiquei com medo.
— Eu só estava brincando! Não bati nele.
— Seu filho costuma bater em garotas? — Indagou o ferreiro.
Meu pai olhou envergonhado para o ferreiro, e depois para a mulher que tentava acalmar a pobre garota. Pacientemente ele me disse:
— Kannofi, não se deve bater em meninas, elas são frágeis e devem ser protegidas. Peça desculpas a ela e promete que nunca mais vai machucá-la.
— Desculpa, pai, achei que era um garoto. — Expliquei quase chorando.
— Entregue isso a ela. E faça o que seu pai mandou. — Minha mãe apareceu ao meu lado com uma boneca feita de pano. Ela deve ter escutado os gritos e corrido para ver o que era, pois eu não me lembro de tê-la visto antes disto. A boneca, com certeza, era de alguma serva que estava por perto, pois lembro que era muito feia.
Izi tremia e chorava baixinho, mas quando entreguei a boneca e prometi não machucá-la, ela abriu um sorriso que me surpreendeu. Depois daquele dia, ficamos inseparáveis. Agora, estávamos apenas esperando a resolução de mais uma brincadeira de lutas.
Ela estava radiante, com os olhos vermelhos e cheios de lágrimas, mas nem mesmo assim perdia a sua beleza.
Fiquei tentado, tenho que confessar. Se minha mãe não tivesse aparecido na porta nos chamando, com certeza teria tentado beijá-la novamente.
Entrei calado em casa. O ferreiro estava de pé ao lado de uma grande espada. Minha barriga congelou, fixei o olhar na espada e esperei o pior. Minha mãe simplesmente saiu, me deixando mais apavorado que antes.
— Fecha a porta e senta.
— Mas… — apontei para fora.
— Esso é só entre nós dois.