O Silêncio que Criou Deus - O Sussurro nas Ruínas
O ano era 2184 quando o mundo acabou. Mas não foi de forma abrupta, como muitos imaginavam. Não houve uma única explosão que devastasse cidades ou um colapso econômico que arruinasse nações. Foi um processo gradual e perverso, uma lenta desconstrução da realidade que pegou todos de surpresa.
Tudo começou com os Portais. O primeiro apareceu no céu sobre Nova Délhi em janeiro de 2169. No início, era apenas uma anomalia, um rasgo de luz que brilhava intensamente e desaparecia em minutos. Cientistas de todo o mundo correram para estudá-lo, e, por anos, acreditaram que era um fenômeno natural. Mas eles estavam errados.
Em 2174, os portais começaram a surgir com mais frequência, e não apenas no céu. No meio de florestas, no centro de cidades, até mesmo nos oceanos — portais de todas as formas e tamanhos começaram a se abrir. Alguns desapareceram em segundos; outros permaneceram por semanas. E então, eles começaram a cuspir coisas.
Primeiro vieram as criaturas. Algumas pareciam ter saído de pesadelos, com formas que desafiavam a lógica: corpos cobertos de espinhos, olhos em lugares errados, movimentos que eram rápidos demais para serem acompanhados. Outras, porém, eram quase humanas — mas apenas quase. Elas observavam, silenciosas, como predadores calculando o momento certo para atacar.
Depois vieram os Mortos, ou como as pessoas começaram a chamá-los: os Vagantes. Ninguém sabe ao certo se os portais os trouxeram ou se algo no mundo simplesmente quebrou, mas os mortos começaram a levantar. Não eram como nos filmes antigos, não arrastavam os pés sem rumo. Eles tinham propósito. Moviam-se como se fossem guiados por algo maior, algo invisível. E, pior, eles falavam. Palavras desconexas e murmuradas, mas falavam.
Em 2181, o céu começou a mudar. As rachaduras que surgiram entre as nuvens não eram simples tempestades ou fenômenos climáticos. Eram cicatrizes na própria realidade, como se o universo estivesse se partindo ao meio. Cada vez que uma dessas fendas se abria, uma onda de desespero parecia atravessar a Terra, como se algo no coração de cada ser vivo fosse arrancado.
Agora, em 2184, restavam poucos sobreviventes. As cidades foram abandonadas ou consumidas pelo caos. Grupos de humanos se reuniam em fortalezas improvisadas, tentando sobreviver em um mundo onde o dia nunca amanhecia completamente, e a noite nunca terminava de fato.
Foi nesse mundo, 15 anos após o primeiro portal, que Lian vagava sozinho.
Ele não sabia o que era viver antes do fim. Nascido em meio ao caos, Lian só conhecia o medo como companheiro constante. Ele se movia pelas ruínas em busca de comida, água, ou qualquer coisa que pudesse mantê-lo vivo por mais um dia.
Naquele momento, seus pés o levaram até uma biblioteca abandonada. O prédio era um dos poucos que permaneciam intactos, embora estivesse coberto de musgo e rachaduras. Lá dentro, tudo parecia congelado no tempo. Livros estavam espalhados pelo chão, e estantes tombadas formavam um labirinto caótico.
Mas algo estava errado ali.
O silêncio era absoluto, opressivo. Não havia o som de vento, nem o farfalhar das folhas dos livros. Era como se o lugar estivesse preso em um vácuo, fora do alcance da realidade.
E então ele viu.
Entre os escombros, em uma sala onde a luz mal entrava, uma mesa chamava atenção. Nela repousava um livro de aparência antiga, com capas negras e símbolos que pareciam pulsar levemente, como se fossem veias vivas.
Ao se aproximar, Lian sentiu uma pressão no peito. Não era física, mas mental. Como se algo estivesse o observando de dentro daquele livro.
Ele estendeu a mão, hesitante. O ar ao seu redor parecia mais frio, mais denso, como se estivesse sendo puxado para dentro do objeto. Quando seus dedos finalmente tocaram a superfície metálica, um sussurro encheu sua mente.
As palavras eram indistintas, mas carregavam um peso insuportável, como se fossem antigas demais para serem compreendidas. E ainda assim, ele sentiu que eram destinadas a ele.
Seus dedos tremiam enquanto abria o livro. E então o silêncio se quebrou.