Capítulo 2 - Circunstâncias
Capítulo 2 – Circunstâncias
A Santa Cavaleira ajeitava a sua capa roxa, escondendo o braço esquerdo, aquele que já não possuía mais. Seus cabelos alaranjados eram belos e suaves ao vento, indo até uma pequena parte de seu pescoço. Ela caminhava com um sorriso aliviado entre aqueles que estavam feridos, se direcionando ao seu comandante.
— Notei que vocês perderam um trem. — Afirmou ela, enquanto ajudava Yabu a se levantar, puxando-o pelo braço.
— Era muito chamativo, Senhorita, então tivemos que abandoná-lo no caminho. — Respondeu ele, balançando um pouco a cabeça pelo zumbido, e pondo os seus óculos no rosto, já que não tinha mais sinal de seu capacete. — Não deveriam ter reforços por esta área?
Yabu olhou para o lugar todo destruído que, antes da batalha, era só um pequeno conjunto de vilas em um lugar remoto, mas que, para a guerra, era um lugar estratégico.
— Desde que os santos entraram na guerra, povoados sem potencial mágico como este têm sido negligenciados. Porém, com os médicos que você trouxe, com certeza podemos virar o jogo, ainda existem aldeões fortes dispostos a lutar. — Ela falou isso enquanto verificava os médicos que tratavam as vítimas, seus olhos percorrendo as feridas, avaliando a profundidade delas, e suspirando em alívio porque elas não eram fatais.
— Você, de todas as pessoas, odeia a escravidão? Por que me pediu para trazer o garoto, então? — Yabu questionou-a, enquanto eles caminhavam até Axel, que recusava tratamento pois não parecia ferido.
— Comandante, você me entendeu mal. Não quero que ele seja um escravo. A princípio ele chamou a minha atenção por isso, mas o motivo de o trazer aqui foi outro.
Ela foi até o garoto e, bagunçando o cabelo de Axel mais do que ele já estava, lhe deu um gentil sorriso.
— E então baixinho, pode me dizer o seu nome?
Ao sentir o toque da mulher, o coração de Axel bateu ainda mais rápido, ansioso, e ele ficou sem entender o porquê daquele sentimento estranho quando ela fez esse movimento. Normalmente, quando alguém fazia isso, era seguido por uma agressão, mas, aquele toque não parecia hostil, no entanto, ainda era incômodo para ele.
Axel ainda se perguntava se tinha feito algo de errado, estava confuso.
— Eu sou Axel! E para de mexer no meu cabelo! — Ele deu um tapa no braço da mulher, se irritando ainda mais com as risadas que ela lhe deu, logo em seguida.
— Olha só, ele sabe latir. — Disse a Santa, rindo e o imaginando como um filhotinho de cachorro bravo. — Au au.
— Não me sacaneia! — Axel estava com o coração acelerado, pronto para atacar a Santa.
A Santa notou o quanto de energia o garoto parecia ter, desviando com facilidade de seus golpes emocionados com um simples balançar de mãos, e com passos ágeis, como de uma dançarina.
— Que tal você deixar eu tirar isso, hein? — A Santa envolve a sua própria mão com alguns raios, segurando na coleira de ferro, que estava em volta do pescoço do garoto, e a destrói por completo, sem o ferir ou sequer lhe dar um choque.
Axel ainda mantinha os seus olhos fechados e o corpo encolhido, com medo da dor e do choque, que não haviam chegado, até sentir o pousar da mão da Santa sob sua cabeça de uma forma reconfortante. O vento, pela primeira vez em anos, passou pelo seu pescoço, o deixando arrepiado. Seu coração estava confuso ao abrir os olhos, e essa ansiedade lhe dava uma expressão de felicidade entorpecida. Seus pensamentos foram interrompidos pela doce voz da Santa.
— Ainda não disse o meu nome, não é? Sou a Isabel, muito prazer. — Ela o acolheu embaixo do seu braço, direcionando-o para outro lugar. — Yabu, eu e o baixinho vamos nos infiltrar e tentar capturar o comandante deles.
— Senhorita, não seria melhor armar um plano que não envolva apenas atacar? Afinal, nesse momento estamos em desvantagem em número de pessoal, e você tem uma criança com você.
— E quem disse que eu vou com você?! — Indagou Axel, empurrando a Santa Cavaleira, tomando alguns passos de distância com uma adaga já em sua mão, surpreendendo a todos.
Isabel era quem estava surpresa, já que aquela adaga estava em sua perna, mas acabou dando a ele um sorriso de aceitação.
— É verdade, pode ir embora se quiser. Se todos aqui precisaram se unir para sobreviver, com certeza você consegue sozinho. — Isabel usou um tom de ironia em sua voz, esticando a sua única mão para Axel. — Mas, eu quero minha adaga.
Contrariado, Axel olhava a sua volta, a floresta que eles estavam não parecia tão densa, pelo fato de eles estarem em algumas ruinas, mas, sem saber onde ele estava, dificilmente poderia fugir dali em segurança. Seus pensamentos vagavam na possibilidade de os enfrentar e fugir, mas seria uma péssima escolha, tinha os visto em ação.
— Já que você me libertou, que tal isso? Eu ajudo você, e você me deixa ir embora. — Axel sugeriu, analisando as suas opções.
— Se é o que quer. — Decepcionada, ela fez a sua adaga retornar a sua mão com um rastro de eletricidade dando, propositalmente, um choque na mão de Axel.
Ela olha em volta, pensando na batalha até ali, e acaba concordando com o que Yabu disse antes.
— Você tem razão, atacar pode não ser uma boa ideia.
— Minha mão! Sua filha da p-
Axel estava irritado com o choque. Ele andou até onde o seu cachecol estava, agora um pouco rasgado, e o pôs de volta em seu pescoço, o deixando aquecido, como costumava ser.
Quando Yabu começou a falar, ele se agachou e começou a fazer um desenho de um pequeno grupo de pessoas fortes, contra um monte de pessoas fracas e, mais ao longe, um monstro maior.
— É uma tática de saqueadores. Eles mandam os mais fracos e descartáveis primeiro, para testar ou cansar os mais fortes, enquanto eles cercam a todos com um grupo maior, e então, o líder deles é quem dá o golpe final. — Explicou ele, desenhando parte da cena com bonecos de palitinho, destruindo tudo com uma palmada, naquele chão cheio de areia, se mantendo agachado. — Até onde eu sei, você tem corrido de um lado para o outro durante a batalha inteira, então, pode ser esse o caso.
Enquanto ele falava com Isabel, Axel observava a interação entre os dois, percebendo que estava diante de uma líder experiente. Ele mesmo conhecia essa tática, já que ele fazia parte do primeiro grupo, há pouco tempo. E, embora ainda sentisse uma mistura de medo e desconfiança sobre os dois, também sentia uma pontada de esperança.
— Tirando os seus desenhos horríveis, eu entendi, mas eles sabem que não temos poder para um combate direto, não faz sentido eles prolongarem a batalha propositalmente. — Isabel disse, com a mão em seu queixo, desviando o olhar para Axel, que espreitava atrás deles. — O que acha, baixinho?
— Prolongando a batalha eles podem acabar com os inimigos e seus reforços de uma vez, e não me chame de baixinho, sua maldita! — Ele estava raivoso, mas conteve um pouco a sua voz, evitando contato visual com eles.
— Você não está pensando em…
— É claro que sim comandante — Interrompendo Yabu, Isabel continua — Nós vamos cair na armadilha! Mas, nos nossos termos. Tem um pequeno desfiladeiro aqui perto, se atrairmos os demônios para lá, não importa o número que tenham, o alcance em terra deles vai ser limitado, tenho certeza de que você e o resto do seu pelotão podem dar conta por cima. — Isabel finaliza sua fala com total confiança e um sorriso alegre no rosto.
— Você vai deixar nós sermos cercados por que quer lidar com eles, em vez de fugir? Que estratégia idiota. — Axel resmungou, sem a olhar diretamente, com um nítido tom de julgamento.
— Tem mais vidas do que a nossa em jogo, só preciso tomar o risco maior para mim, eu te protejo, baixinho. Vamos sozinhos para o desfiladeiro, quando você se tornar um Santo Cavaleiro como eu, vai ver como a vida é bem melhor daqui de cima. — Ela bagunça outra vez o cabelo do garoto, o provocando, propositalmente.
— Para de mexer no meu cabelo! E eu não sou baixinho, desgraçada! — E então, o carinho dela se torna um cascudo na sua cabeça.
— Olha a boca, filhote de formiga! — Enquanto ele cobre a cabeça, por causa da dor, Isabel solta um longo suspiro, acompanhado com uma leve risada irônica. — Bobo.
— Yabu, os outros estão mais ao norte, continue seguindo a direção que estavam, vão encontrar eles rápido, vejo vocês no desfiladeiro, mais a noroeste. — A voz de Isabel tinha um tom sério, enquanto ela tenta pôr a mão na cabeça de Axel outra vez, mas acaba sendo recusada com um tapinha dele.
— Sim senhora, tenta não quebrar o garoto.
Enquanto presenciava as pequenas implicâncias entre os dois, Yabu constatou que eles pareciam duas crianças brigando um com o outro, o que acabou lhe dando uma certa nostalgia, por um segundo. Voltando para o presente, ele ordenou aos seus homens.
— Vamos, quanto mais rápido irmos, mais cedo voltamos.
O caminho era uma floresta seca, com muitas marcas de batalha espalhadas, fossem elas mágicas ou de armas. Cada parte daquele lugar conseguia contar pedaços de uma história, como um coração que tinha as letras iniciais de dois jovens apaixonados, talhado em uma árvore, ou a marca de uma lança que foi fincada durante um combate, e assim por diante.
Axel e Isabel não trocavam muitas palavras, e possuíam a mesma mania de ficarem reparando nos arredores, tentando ouvir algo diferente no ambiente, mas tudo o que escutavam era nada mais do que algumas explosões ao longe, onde Yabu e seus homens, com os seus arcos mágicos, estavam em uma batalha com os demônios. Cada arco deles possuía detalhes lineares, cujo a cor fazia referência ao elemento que ele estava encantado, sendo a maioria dourado, que vinha do elemento luz, pois ele era o que tinha uma eficácia maior contra os demônios.
— É só uma missão de escolta Yabu, trabalho fácil para a gente… Acredita nela Yabu, as coisas não vão sair do controle de novo. — Resmungava Yabu para si mesmo, enquanto as suas flechas iam de encontro a cabeça dos demônios, como se elas possuíssem um imã na ponta.
— Comandante! Não adianta, não conseguimos parar o avanço dos demônios. — Diz um dos soldados, se escondendo com Yabu, atrás de uma grande árvore caída.
— Não vamos morrer aqui. Diga aos que tem mais energia que fiquem fora de vista, e corram horizontalmente, daremos a eles a impressão de que temos mais números. Mesmo que os tiros se tornem mais imprecisos, conseguiremos tempo para que os feridos e civis recuem mais para trás. E os que tem menos energia, memorizem a posição atual do máximo de demônios possível.
Yabu puxa mais uma flecha mágica, esta brilhando mais do que o normal.
— Comandante, tem certeza de que é uma boa ideia?
— É a menos arriscada a curto prazo. — Ele responde, enquanto atira uma flecha explosiva, que acaba levantando uma cortina de fumaça.
As flechas dos soldados de Yabu caiam como uma chuva, todos fazendo o seu papel no resgate daqueles civis, que também ajudavam apontando a direção dos demônios que conseguissem ver, fazendo um trabalho de equipe para defender a sua terra natal.
Enquanto a batalha acontecia de um lado, Axel e Isabel chegam ao desfiladeiro, prontos para chamar a atenção necessária e trazer o combate até eles. O desfiladeiro era pequeno, visto de fora, porém, o seu interior parecia maior por ser vazio, um cenário totalmente diferente da floresta, como se entrassem em uma pequena área desértica, onde a vida evitava crescer, nem mesmo as árvores ou uma folha sequer ousavam brotar naquela área, não se via nem sombra de uma única folha ali.
— Baixinho, fica escondido ali em cima enquanto eu vou chamar a atenção deles. — Isabel aponta para uma abertura um pouco mais acima, onde Axel ficaria seguro.
— Você não manda em mim. — Axel cruza os braços, evitando o contato direto com a Santa cavaleira. — Enferrujada.
Por um breve momento, Isabel cerra seus olhos, pensando na força do tapa que daria em Axel, mas acaba dando só um empurrão de leve nele, rindo de sua teimosia.
— Tá legal, fica aí e observa, então.
Depois de soltar um longo suspiro, Isabel põe com suavidade a palma de sua mão no chão, como se quisesse sentir o solo. Alguns segundos se passam com ela desse jeito, com os seus olhos fechados e a mão apoiada na terra. Então, ela os abre, reveste a sua mão de raios, e dá um tapa no chão, o qual mal faz barulho. Logo em seguida, o estouro dos raios que ela fez passar entre as rochas criam uma enorme explosão de luz, que vem acompanhado de um chiado estridente, que foi amplificado pelo eco natural do desfiladeiro, chamando a atenção necessária.
Axel, ao ver o enorme feixe de luz e o estrondoso som, fecha os seus olhos e tapa seus ouvidos, enquanto o seu corpo se arrepia por inteiro, pondo a culpa na Santa Cavaleira.
— Podia ter me avisado!
— Eu disse para ficar longe. — Ela diz com ironia em seu olhar, ainda rindo para ele, pondo a mão em sua cintura, e encarando o garoto irritado. — Se quer ficar aqui, é bom não me atrapalhar.
— Para de me subestimar! — Axel, irritado, prepara um soco para dar nela, mas, lembrando do que aconteceu nas últimas duas vezes, não demorou muito para ele desistir e cruzar seus braços, fazendo um beiço. Quando ele volta a falar, mirando os seus olhos para o chão, suas palavras mais se assemelhavam com um sussurro. — Só vou deixar passar essa vez.
Isabel, ainda sorrindo, mexe mais uma vez no cabelo de Axel, sabendo que ia irritá-lo.
— Me assiste primeiro, se achar que pode me acompanhar, pode lutar também. — Assim sendo, ela puxa a adaga guardada em seu cinto e a estende para Axel, vendo o quanto o garoto tinha de força bruta, ao retirá-la de sua mão.
— Então baixinho, você sabe mesmo lutar? — Ela tenta puxar assunto, para fazer com que ele se solte um pouco, já que era notável o desconforto na postura dele.
— Um escravo de combate que não sabe lutar, acha que eu sou idiota, por acaso? — Axel ainda evitava o contato visual com Isabel, enquanto permanecia de braços cruzados.
— Olha, você não vai querer que eu responda essa pergunta. — Ela se senta no lado aposto ao dele. — Mas você parece bem fortinho para a sua idade.
— Tanto faz, nunca foi suficiente… — Ele rebateu, parecendo ainda mais desanimado com a afirmação dela.
— Suficiente? Para que?
— Não importa. — Sua voz sai de forma grossa, deixando a sua postura um pouco mais rígida.
— Está bem, não está mais aqui quem perguntou.
Isabel levanta a sua mão em gesto de rendição, com um singelo sorriso para ele, que sequer a olhava, mas mantinha um estado alerta constante.
A tarde começou a entrar em sua segunda metade, a caminho do anoitecer. Não muito tempo depois que eles chegaram, o vento do desfiladeiro se tornava mais seco com o passar do tempo, as folhas das árvores finalmente davam sinal de vida, passando por cima do desfiladeiro, junto com o vento, algumas poucas caindo perto de Isabel. As rochas pareciam criar vida, um leve balançar no tremor de dezenas de passadas pesadas, ou centenas de passadas mais leves.
— Eles chegaram. — Constata ela, com um sorriso no rosto, enquanto guardava os seus pensamentos para si mesma, de que tudo estava bem. Porém, algo ainda lhe incomodava, mas ela acaba ignorando essa sensação estranha.
— Espero que não esteja com medo. — Diz Axel, com um olhar vidrado na direção de onde pareciam vir os demônios, segurando a adaga de Isabel firme em sua mão esquerda.
— Você ainda tem muito para aprender, vai com calma, baixinho. — Ao ver algumas dezenas de demônios entrando em seu campo de visão, Isabel estava pronta para batalha, tendo o garoto ao seu lado.