Crown Crow - Novel - Capítulo 04 - Pesar
Capítulo 04 Pesar
Cauã estava mergulhado em uma escuridão sufocante, a sensação de queda sem fim dominava sua mente. O vazio ao seu redor era opressor, e o silêncio absoluto fazia cada tentativa de gritar parecer inútil. Não havia eco, não havia som, como se ele estivesse aprisionado no fundo de um oceano gelado. Seu coração batia forte, mas o ritmo descompassado fazia seu peito doer, e a cada respiração, o ar parecia mais escasso. Ele tentava lutar contra o pânico, mas a sensação de estar sendo engolido pelo abismo crescia.
Sua visão se embaralhou, e o desespero se transformou em uma espiral sufocante. O silêncio era insuportável, um vazio que ampliava cada batida frenética do seu coração. Sua respiração acelerava, tornando-se cada vez mais pesada, cada suspiro se tornava um esforço monumental, como se os pulmões se recusassem a funcionar. Ele estava ficando sem ar, sem saída, como se o próprio mundo o estivesse esmagando.
De repente, como se tivesse rompido uma barreira invisível, seus olhos se abriram. O vazio ao redor se dissipou em um instante. Ele ofegou, puxando o ar com desespero, sentindo a realidade retornar com uma intensidade avassaladora. Seus pulmões finalmente obedeciam, e ele se levantou bruscamente, o peito subindo e descendo como se estivesse se salvando de um afogamento. O pavor ainda o dominava, mas agora, ao menos, ele podia respirar.
Olhando ao redor, o ambiente parecia familiar — a mesma floresta, o mesmo local onde desmaiara. No entanto, algo estava errado. O ar parecia mais denso, carregado de uma presença pesada. Uma fina camada de névoa, que antes não existia, agora serpenteava por entre as árvores, como um véu invisível que distorcia o real. Cauã sentia um frio estranho, não pelo clima, mas por algo que vinha de dentro.
Ele tentou se localizar, girando em confusão, e então, uma pequena pena preta flutuou suavemente à sua frente. Seguindo seu rastro, ele avistou o corvo, o mesmo que habitava seus sonhos e seu quarto. A ave o encarava com olhos profundos, mais sábios do que qualquer outro ser vivo. Por alguns segundos, o silêncio prevaleceu, até que o corvo falou.
— Você parece diferente da última vez que te vi — disse, virando a cabeça de lado. Seus movimentos eram de uma ave comum, mas seus olhos… aqueles olhos o atravessavam.
O garoto hesitou, lembrando-se da última vez que viu a criatura. Naquele momento, não teve chance de dizer nada, mas desta vez… algo parecia ter mudado.
— E-eu… — ele começou, gaguejando, a voz falhando. — Eu não pude fazer nada! Eu só vi eles tentando me proteger… e não consegui ajudar. — Sua voz era um sussurro quebrado, enquanto fechava os olhos com força, os punhos cerrados em uma mistura de arrependimento e frustração.
O corvo o observou, imóvel, por alguns instantes antes de responder.
— Era isso que você queria, não era? — a pergunta veio suave, quase sibilante.
Cauã abriu os olhos num sobressalto. — NÃO! Eu queria… eu só queria conhecer o mundo. Não queria que meus pais morressem! — O desespero em sua voz era palpável, o peso da culpa que ele carregava quase esmagador.
Quando percebeu, o corvo não estava mais em frente a ele. O susto o fez olhar ao redor, o pânico crescente em seu peito. Mas o corvo não desaparecera como antes. Estava mais perto agora, sua presença opressiva.
— Não se culpe por isso — disse a ave, sua voz carregada de uma sabedoria sombria. — O destino deles sempre esteve nas suas mãos. Se não acredita em mim, olhe-as.
Cauã, hesitante, levantou lentamente as mãos. Ele se lembrava de como elas estavam sujas de terra antes, mas agora… elas estavam molhadas. Sangue. Seu próprio sangue? Seus dedos tremiam ao ver as manchas escuras se formando. Um calafrio percorreu sua espinha, e o choque o fez cambalear para trás, caindo no chão. Seu olhar voltou para o corvo, aterrorizado.
— Não foi culpa sua, garoto — repetiu o corvo, sua voz fria, mas com um estranho tom de consolo. — Mas agora, você precisa entender. Descobrir quem realmente é. O que significa ser um Valravn… e, acima de tudo, um Crown.
Os olhos penetrantes da criatura fixavam-se em Cauã, mas, por um breve instante, desviaram-se para dentro da floresta, como se tivessem captado algo distante. O ar ficou mais pesado.
— Nossa conversa termina aqui. — O corvo voltou a encarar Cauã, sua expressão indecifrável. Com uma calma perturbadora, ele murmurou uma frase enigmática: — Zaroth yl’vei noir.
De repente, a sombra abaixo de Cauã começou a se mover, subindo por seu corpo como uma serpente sombria. Ele se contorceu, tentando entender o que estava acontecendo, mas era tarde demais. As sombras alcançaram seus cabelos e os envolveram completamente, transformando seus fios prateados em um profundo e impenetrável negro, ocultando sua verdadeira identidade.
— Espere! — gritou Cauã, a voz trêmula e ansiosa, o pânico crescendo em seu peito. Ele estendeu a mão na direção do corvo, mas antes que pudesse dizer mais qualquer coisa, a criatura o interrompeu.
— ACORDE! — bradou o corvo, sua voz ressoando como um trovão no vazio.
Num piscar de olhos, tudo se desvaneceu. Cauã abriu os olhos de repente, ofegante. Ele estava de volta ao chão da floresta, no mesmo lugar onde havia desmaiado. A névoa havia desaparecido, assim como a estranha sensação de opressão. O ambiente parecia o mesmo, mas algo dentro dele havia mudado — e os cabelos que antes eram brancos como a neve, agora estavam negros como a noite.
O que havia acabado de acontecer?
Cauã, ainda atordoado, passou a mão pelos cabelos, agora tão escuros quanto o céu que começava a se fechar em escuridão. O corpo pesado e os músculos rígidos indicavam que ele havia ficado desmaiado por horas. A incerteza se Kartein ainda o caçava persistia, mas ele sabia que não podia ficar ali.
Seu rosto, antes marcado pelo medo e pavor, agora refletia uma expressão endurecida, quase feroz. A dor da perda e a raiva começavam a ocupar o lugar do desespero. Recostando a mão em uma árvore, ele respirou fundo, os olhos fechados por um momento, como se tentasse sufocar a lembrança dos últimos momentos — as vidas arrancadas diante de seus olhos.
Não havia mais volta, não havia o que salvar. Sua única alternativa era fugir. Desaparecer nas sombras da floresta, onde talvez, apenas talvez, pudesse sobreviver.
Cauã olhou uma última vez para trás, o peito apertado, e então, sem hesitar, lançou-se para frente.
Horas depois, mais adentro da floresta, Cauã já estava imerso na escuridão, o frio da noite o envolvendo enquanto ele se movia silenciosamente entre as árvores. Cada passo era cuidadoso, calculado, como Simão havia lhe ensinado. Ele mantinha os sentidos aguçados, atento a qualquer som ou movimento ao seu redor. A natureza parecia hostil, mas o silêncio quebrado por pequenos estalos e sussurros das folhas denunciava que ele não estava sozinho.
Cauã se abaixou, ocultando-se entre arbustos. Seus olhos focaram na criatura à frente — um Roggue, exatamente como os que Simão o treinara a caçar. A criatura saltava de maneira errática, mas o jovem sabia que poderia usar isso contra ela. Ele apertou a faca em suas mãos, mantendo o foco em seus movimentos.
Fechando os olhos por um breve segundo, ele recordou as palavras de seu pai: “O som é sua arma mais poderosa contra eles. Use o ambiente a seu favor.” Sabendo disso, Cauã ergueu uma pedra próxima e jogou-a para o lado oposto, criando um som que ecoou pela floresta.
O Roggue imediatamente reagiu, saltando na direção do ruído. A criatura era rápida, mas Cauã, ainda mais. Em um movimento preciso, ele saiu das sombras, sua faca atravessando o corpo do monstro em um golpe certeiro.
O Roggue caiu com um baque suave, sem emitir som. Cauã observou a criatura por um instante, seu peito subindo e descendo enquanto sentia a adrenalina ainda pulsar. Ele dominara a lição de seu pai, mas a sensação de vazio crescia com cada passo que dava mais fundo na floresta.
Com a caça bem-sucedida, Cauã sabia que pelo menos o problema imediato de comida estava resolvido. O pequeno Roggue seria suficiente para lhe sustentar naquela noite. No entanto, a floresta densa ainda escondia muitos perigos, e ele teria que manter os olhos abertos durante a noite. O frio e o silêncio ao seu redor aumentavam a sensação de isolamento, mas sobreviver naquelas condições não seria um desafio impossível. Os poucos dias que passou com seus pais, aprendendo a caçar e viver na natureza, agora se mostravam cruciais.
Cauã rapidamente acendeu uma fogueira, o calor das chamas trazendo um breve conforto enquanto ele preparava a carne do Roggue para comer. O brilho alaranjado iluminava seu rosto cansado, e cada mordida parecia restaurar parte de suas forças. Mas, apesar da refeição, sua mente permanecia inquieta. Havia muito mais do que fome para se preocupar.
Quando terminou, apagou a fogueira cuidadosamente, enterrando as brasas e certificando-se de que não deixaria rastros que Kartein, ou qualquer outro pudesse seguir. Ele sabia que precisava se mover, precisava se localizar, mas em meio à vastidão da floresta, estava completamente perdido. O peso da noite caía ao seu redor, e as árvores, que antes pareciam familiares, agora o sufocavam com sua escuridão interminável.
Diante da situação, Cauã notou uma imponente árvore de ébano próxima, cujas raízes robustas pareciam abraçar o solo com firmeza, formando uma base sólida e confiável. Era o lugar perfeito para ganhar uma visão melhor do terreno. Sem hesitar, começou a escalada, cravando as mãos nas ranhuras da casca áspera, e impulsionando-se com os pés, cada movimento o levando mais para cima.
Quando finalmente alcançou o topo, o ar frio da noite o envolveu, e a vista se abriu diante dele. Ao longe, avistou uma vasta planície — reconheceu-a como o caminho de onde havia fugido. A ideia de voltar por aquela direção fez seu corpo estremecer. Ele desviou o olhar, focando mais profundamente na floresta.
Enquanto recuperava o fôlego, algo chamou sua atenção. Uma chama fraca cintilava no horizonte entre as sombras das árvores, quase ocultada pela densidade da floresta. A luz era sutil, mas inegável. Não parecia algo associado a Kartein ou seus homens; um aristocrata jamais acamparia de forma tão modesta no coração da floresta.
Mesmo sem saber quem ou o que poderia encontrar, aquele sinal de vida despertou sua curiosidade e uma ponta de esperança. Talvez, naquele fogo, houvesse uma chance, ou ao menos, respostas. Decidido, ele sabia que teria de investigar.
Cauã desceu da árvore com a mesma cautela que havia subido, cada movimento calculado para não fazer barulho. Seus pés tocavam o chão com leveza, desviando de galhos secos, arbustos espinhosos e folhas mortas que poderiam traí-lo com um estalo. Conforme avançava pela floresta, o brilho da fogueira ficava mais forte, a chama distante se tornando cada vez mais vívida.
A poucos metros do acampamento, ele pôde ouvir as vozes de pessoas conversando, o som suave e despreocupado. Agachou-se rapidamente atrás de um tronco caído, escondendo-se nas sombras. A fogueira queimava de forma ritmada, seus estalos se misturando com o farfalhar das árvores. A luz laranja dançava no ambiente, criando uma ilusão de segurança que contrastava com a escuridão da floresta ao redor. Três homens estavam de pé, todos vestidos com roupas refinadas, embora sem armaduras. Em seus mantos, o símbolo de um cervo branco brilhava discretamente, indicando que não eram mercenários comuns.
Perto da fogueira, uma família chamava a atenção de Cauã. Uma mulher loira, de pele clara e traços delicados, conversava com um homem de constituição imponente. Sua pele escura e braços largos demonstravam força, mas havia gentileza em seu semblante. Ao lado deles, uma jovem garota, provavelmente da mesma idade de Cauã, observava a fogueira com um olhar inocente. Seus cabelos dourados brilhavam à luz do fogo, criando uma imagem quase surreal de paz.
Por um breve instante, a atmosfera tranquila do acampamento acalmou o coração de Cauã. O ambiente parecia seguro, como se aquelas pessoas não fossem inimigos. Contudo, um nó se formava em seu peito. A visão daquela cena familiar lhe trouxe uma sensação angustiante, ecoando o calor humano que havia perdido tão recentemente. Ele sabia que deveria permanecer atento, mas a dor de sua perda ainda estava fresca, e a visão daquela paz familiar o atormentava, como se o lembrasse cruelmente do que ele não podia mais ter.
Cauã se afastou lentamente do tronco que o escondia e, com agilidade, subiu em uma árvore próxima, escolhendo um galho alto e seguro para passar a noite. Dali, ele teria uma visão clara do acampamento e, ao amanhecer, poderia segui-los de forma discreta. Mas, por mais que tentasse relaxar e deixar o sono chegar, sua mente estava inquieta.
Tudo havia mudado tão rápido. Seus pais, antes protetores e firmes ao seu lado, agora eram apenas memórias. Um estranho perigoso o caçava, e o corvo enigmático — a figura que o visitava nos sonhos — parecia trazer mais perguntas do que respostas. Crown. A palavra pulsava em sua mente, junto com o símbolo da Casa Raven, um corvo imortalizado em sombras. O peso daquilo o sufocava.
Porém, apesar do caos em sua cabeça, o som das risadas e conversas tranquilas que vinham do acampamento logo abaixo lhe trouxeram uma estranha sensação de conforto. Por um breve instante, ele se lembrou de tempos felizes, momentos simples que já pareciam distantes demais. Aquela memória suave foi o suficiente para acalmá-lo. A tensão em seus músculos cedeu, e, finalmente, Cauã permitiu-se fechar os olhos e descansar, mesmo que por algumas poucas horas de paz.
Os dias se arrastavam em um ritmo constante e previsível, permitindo que Cauã criasse uma rotina silenciosa. Todas as manhãs, ele se afastava do grupo para caçar, sempre mantendo uma distância segura. Seu instinto de sobrevivência o guiava, e com o tempo, notou suas habilidades se aprimorando. A precisão na caça aumentava a cada investida, e seus passos pela floresta tornaram-se mais furtivos, quase imperceptíveis. Esconder seus rastros e movimentos virou uma arte. Durante as pausas dos viajantes, Cauã aproveitava para treinar com sua adaga, lapidando suas habilidades enquanto o som das conversas se espalhava no acampamento.
Aos poucos, ele compreendeu melhor a pequena família que seguia à distância. Eram nobres, pertencentes à Casa Darnell, com um território próximo àquela floresta. Cauã também percebeu porque os três guardas não vestiam armaduras como os da família Raven. Eram magos.
O mais alto e imponente era Areffe, com um olhar sério e uma postura de confiança. Sua presença era inabalável, mas em momentos de descontração, revelava um lado mais leve, brincando com os outros dois. O segundo, Rar’dir, destoava dos demais. Sua pele avermelhada e seu nome exótico indicavam uma origem distante. Cauã sentia que ele era o mais perceptivo, pois, em diversas ocasiões, Rar’dir parecia quase detectá-lo, lançando olhares suspeitos na direção exata onde Cauã se escondia, como se o sentisse nas sombras.
Por último, Diarsol. Descontraído e desajeitado, ele parecia o menos apto para o papel de guarda, mas era impossível não notar a proximidade que tinha com a jovem nobre. Eles passavam horas conversando sobre as estrelas, e a curiosidade e fascinação de Diarsol por elas pareciam encantá-la.
A pequena garota, Triz Darnell, parecia se encantar com tudo ao seu redor. Ela era o futuro da Casa Darnell, amada e protegida por todos que a cercavam. Tanto os guardas quanto sua família demonstravam uma afeição genuína pela jovem, e Triz retribuía com seu entusiasmo e curiosidade. Fascinada por histórias de magia e aventuras, ela passava horas conversando sobre estrelas e mistérios do mundo com Diarsol. Sua sede de conhecimento e encantamento com o desconhecido lembravam a Cauã sua própria curiosidade, de poucos dias atrás, quando tudo parecia novo e cheio de promessas.
O pai de Triz, Mauros Darnell, chefe da família, era uma figura alta e imponente, mas suas ações revelavam um coração mole, especialmente quando se tratava de agradar a filha. Embora não tivesse grandes habilidades de combate, sua verdadeira força estava na administração de seu território. Ele era protetor e afável com aqueles ao seu redor, estabelecendo uma presença segura e amigável. Sua esposa, Wanesha, era a versão adulta de Triz, irradiando graça e delicadeza. Passava grande parte do tempo ao lado da família, lendo livros que levava consigo e mantendo uma serenidade que inspirava.
Com o passar dos dias, Cauã entendeu melhor o propósito daquela viagem: era uma oportunidade para a família Darnell desfrutar de um tempo juntos, longe das formalidades da vida nobre. Aos poucos, Cauã se permitiu baixar a guarda. Aqueles viajantes não pareciam representar nenhum perigo e, até onde ele podia perceber, não tinham qualquer ligação com a Casa Raven. O simples desejo de Triz por aventuras e o ambiente familiar o faziam sentir que, por ora, ele poderia observar de longe sem riscos imediatos.
A viagem prosseguiu de maneira tranquila, e Cauã aproveitou cada oportunidade para aprender, não apenas sobre aquelas pessoas, mas também sobre a magia que o mundo poderia oferecer. Em sua casa, ele nunca teve tanto acesso ao conhecimento mágico e rúnico, e observar os guardas de longe, enquanto caçavam, se tornou uma fonte inesperada de aprendizado. A sincronia entre os três guardas era impressionante. Nos primeiros dias, eles caçavam de forma fluida e rápida, dificultando que Cauã acompanhasse o ritmo ou entendesse suas habilidades. Mas, com o tempo, as conversas entre eles tornaram-se mais acessíveis, como se estivessem, de algum modo, conscientes de que alguém os observava e aprendia à distância.
Foi durante uma dessas conversas que Cauã recebeu sua primeira lição mágica, ainda que indiretamente, através de Rar’dir. Ele ensinava a Diarsol sobre os fundamentos da magia do vento.
— “Toda recitação de vento começa com a palavra Vethra,” — explicou Rar’dir. — “Que significa, como o nome sugere, vento. Mas o que a magia fará depende do verbo que você conjugar em seguida. Vou mostrar um exemplo.” — Com um gesto preciso, Rar’dir ergueu a mão na direção de uma árvore e recitou: — Vethra yl’vei gorth.
Um círculo verde rapidamente se formou em sua mão e, em um instante, disparou em direção ao tronco da árvore, atingindo-o com força. O som reverberou pela floresta, e Cauã imaginou o que aquilo poderia fazer a um homem. A magia certamente poderia arremessar um adulto para longe com facilidade.
Rar’dir e Diarsol trocaram olhares cúmplices, como se estivessem representando uma lição. Então, Rar’dir continuou:
— “Neste caso, Vethra é vento, Yl’vei significa fluir, e Gorth quer dizer empurrar. Vento, flua e empurre. A magia, no fundo, é o estudo da linguagem rúnica. Mas não adianta nada se você não tiver a aptidão para o elemento. A linguagem corre no sangue. Cada um tem a sua natureza.” — concluiu Rar’dir com um gesto relaxado dos ombros.
Cauã ficou atônito ao ouvir aquilo. Ele finalmente começava a entender como o mundo funcionava e o poder que a magia detinha. Pela primeira vez, sentiu a urgência de se afastar para testar se ele próprio tinha algum talento para conjurar aquele tipo de feitiço.
Cauã desceu das árvores, afastando-se cautelosamente do grupo até encontrar um espaço isolado diante de uma grande pedra. Ele respirou fundo, sentindo a ansiedade e a excitação se misturarem ao imaginar o que estava prestes a tentar. Firmou os pés no chão, ergueu a mão esquerda e, com toda a concentração que podia reunir, recitou:
— Vetra Ylvei Goth — enquanto fechava os olhos, esperando pelo milagre da magia.
Sem perceber que a recitação estava incorreta, segundos se passaram em um silêncio constrangedor. Nada aconteceu.
Frustrado, ele se jogou no chão, pensando no que havia feito de errado. A decepção pesava em seu peito. Então, lembrou-se de como Rar’dir pronunciava as palavras, pausadamente, dando ênfase a cada sílaba. Talvez o problema estivesse em sua forma de recitar. Determinado a tentar de novo, ele sentou-se, cruzou as pernas e colocou as mãos à frente.
— Vethra — sussurrou, ainda sem sentir que estava certo. Tentou várias vezes, mas nada mudava.
Exausto e quase desistindo, Cauã respirou fundo, fechou os olhos e acalmou seu corpo. Com um último esforço, ele recitou com mais força:
— VETHRA!
De repente, o vento ao seu redor começou a se agitar, como se respondesse ao seu comando, envolvendo-o em uma corrente de ar que bagunçou seus cabelos escuros. Cauã, surpreso, caiu para trás, agora com um sorriso largo no rosto. A alegria o invadiu, e ele saltou de pé, pulando de felicidade. Ele havia feito sua primeira magia. Podia controlar o vento!
Entusiasmado, sentou-se novamente e, mais confiante, tentou recitar o feitiço completo. Depois de algumas horas de prática e esforço, uma pequena rajada de vento finalmente disparou em direção à pedra. Era fraca, muito mais fraca do que a de Rar’dir, mas era um avanço. Ele sabia que aquilo o ajudaria imensamente no futuro.
Já estava escurecendo quando decidiu que era hora de voltar para perto do acampamento dos Darnell. Agora, mais determinado do que nunca, ele continuaria a observar, aprender e aprimorar suas habilidades mágicas.
Ao amanhecer, Cauã seguiu de forma discreta sobre as árvores, acompanhando os três guardas em direção ao mesmo local onde haviam praticado magia no dia anterior. Desta vez, quem liderava o grupo era o jovem Areffe, que os guiava em direção a um vasto campo aberto. Cauã estava animado e, em sua empolgação, tornara-se um pouco mais descuidado com seus movimentos furtivos, ansioso para descobrir quais magias poderiam ser utilizadas por outra pessoa.
Ao chegarem ao local, Areffe, em tom brincalhão, conversava animadamente com Rar’dir e Diarsol, enquanto discutia sobre o elemento fogo, como se fosse intrinsecamente superior aos outros. A conversa, descontraída, rapidamente se transformou em um debate acalorado, onde Rar’dir se mostrava indignado, defendendo que o seu vento era mais poderoso e versátil.
Assim que a discussão se acalmou, Areffe fez uma pausa antes de pronunciar o feitiço.
— Ignar t’ornas azura! — gritou, e instantaneamente, uma parede de chamas irrompeu diante dele, bloqueando a visão do campo à frente.
Diarsol, com as mãos cobrindo o rosto para evitar o calor intenso, exclamou:
— AVISE ANTES DE LANÇAR UMA MAGIA!!!
Quando a parede de fogo finalmente se dissipou, Areffe se virou para os amigos, batendo as palmas como se limpasse as mãos, e comentou, sorrindo:
— Não adianta eu avisar o que vou fazer, é completamente diferente do que aconteceu ontem. Para entender melhor, primeiro é preciso ver.
Em seguida, ele continuou:
— Seguindo a mesma lógica da magia do vento, “Ignar” significa fogo, mas pode sofrer algumas variações, sendo também pronunciado como “Ishgar”, dependendo da intensidade da magia lançada.
Enquanto falava, uma pequena chama apareceu na ponta de seus dedos, e ao vocalizar a palavra, mudando a pronúncia com o suave “Sh”, a chama se intensificou, revelando uma forma mais avançada da linguagem rúnica.
Cauã, que observava à distância, ficou maravilhado com a complexidade da linguagem mágica. Assim como havia percebido no dia anterior, uma leve diferença na pronúncia poderia mudar completamente o desfecho de uma batalha.
Quando Cauã voltou sua atenção para os três, Areffe explicava os detalhes do feitiço.
— Bem, seguindo a lógica, T’ornas significa “eleve” e Azura significa “chama”. Portanto, a recitação ficaria: “Fogo, eleve a chama”. Mas há diversas variações para os feitiços.
Com um sorriso de deboche, Diarsol comentou para Rar’dir:
— Mas tem tantos magos de fogo por aí que é até difícil considerar alguém com aptidão para fogo como um verdadeiro mágico.
Rar’dir soltou uma risada, enquanto Areffe, já irritado, conjurou uma bola de fogo e a lançou em direção a Diarsol. Era como se três crianças travessas estivessem brincando umas com as outras. Seguindo a deixa, Areffe gritou:
— Melhor que você, ou seu esquisito das estrelas! Quero ver você explicar o que faz!
Diarsol sorriu levemente e foi em direção a Areffe, levantando as mangas.
— Olhe e aprenda! — exclamou, empurrando o ombro de Areffe para o lado enquanto se afastava dos outros dois.
Com os braços abertos, Diarsol fez algo diferente dos demais, recitando apenas uma palavra.
— Astra! — Com essa única palavra, uma barreira circular de energia se formou ao redor de uma pequena pedra no campo aberto. A esfera, com tons roxos, pretos e dourados, comprimia a pedra contra o chão, como se algo invisível a estivesse esmagando. Quando a magia se dissipou, a pedra se transformou em migalhas, espalhadas pelo chão.
Com um sorriso de satisfação, Diarsol virou-se para seus companheiros, como se esperasse elogios.
— Isso continua estranho toda vez que vejo — comentou Areffe, franziu a testa. — Que elemento é este?
— Nem nas minhas terras existe algo parecido — disse Rar’dir, olhando para Diarsol com um misto de admiração e confusão. — E o pior é que essa habilidade estranha está nas mãos do mais idiota!
Diarsol, ansioso por reconhecimento, gritou:
— Ei! É a minha magia, tá bom? Mesmo que eu também não saiba nada sobre ela!
Cauã, que já estava animado com a magia do vento que aprendera, agora se sentia assustado e entusiasmado ao mesmo tempo. Magia poderia ser perigosa, mas parecia divertida de dominar. Seguindo a mesma lógica que utilizara no dia anterior, mal podia esperar para correr dali e descobrir se tinha aptidão para as duas magias que acabara de testemunhar.
Vendo que os três guardas seguiam de volta para o acampamento, Cauã decidiu se retirar novamente para tentar usar magias de outros elementos. Sentou-se com as pernas cruzadas, relembrando cada detalhe do que havia observado, concentrando-se nas palavras e gestos. Desta vez, ele não demorou tanto para pronunciar o feitiço corretamente; a experiência do dia anterior se mostrava valiosa.
Com mais confiança, Cauã se levantou, ergueu a mão e recitou o feitiço com firmeza:
— Ignar t’ornas azura!
No instante em que proferiu as palavras, sentiu um calafrio percorrer seu corpo, como se a magia estivesse se formando dentro de si. No entanto, logo em seguida, nada aconteceu. Nenhuma chama, nenhuma faísca. Desanimado, Cauã ficou pensativo, tentando entender o que havia dado errado. O encantamento parecia correto, diferente da experiência com a magia do vento.
Perdido em suas reflexões sobre o fracasso, ele não percebeu que estava sendo observado. Sentado no chão, ouviu uma voz calma vindo de trás:
— Pelo visto, você não tem afinidade com esse elemento, garoto.
Cauã deu um salto, assustado, afastando-se rapidamente. Quando se virou, viu Rar’dir encostado em uma árvore, relaxado, como se já estivesse há algum tempo observando-o. O olhar de Rar’dir era sereno, sem qualquer sinal de hostilidade.
Cauã se preparou instintivamente para reagir, mas Rar’dir ergueu as mãos em um gesto pacífico, sinalizando que não representava uma ameaça.
— Calma, não estou aqui para lutar — disse ele, com um sorriso de canto de boca, ainda recostado à árvore.
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