A Sombra do Criador (Novel) - Capítulo 20
Capítulo 20: Desconfiança.
Assim que os dois elfos restantes perceberam o que acabara de acontecer, suas reações foram rápidas e coordenadas. Eles saltaram para trás, se posicionando em lados opostos de Raven, mantendo os olhos fixos nele. A elfa, com um semblante tenso, sacou sua adaga, assumindo uma postura de combate enquanto gotas de suor escorriam por sua testa. O elfo de aparência mais robusta, por outro lado, puxou a corda de seu arco com firmeza, mirando diretamente em Raven.
Raven observava ambos calmamente, imóvel, como um predador prestes a atacar. Ele não se abalava com a tensão crescente ao seu redor. Sem pressa, levou a mão ao pescoço e o estalou, o som ecoando em meio ao silêncio mortal que havia se instalado. Em seguida, virou a cabeça na direção do elfo que ele havia acertado. O elfo ainda estava estirado no chão, a dezenas de metros de distância, cuspindo sangue. Com uma das mãos sobre o peito, ele tremia de dor e, entre soluços, gritou algo em uma língua completamente desconhecida para Raven:
—”Luterstur ondertev kriav!”
As palavras soaram estranhas aos ouvidos de Raven, que não entendia absolutamente nada do que o elfo tentava dizer. “Tsc… idiotas.”, pensou ele, com desprezo. “Seja lá o que estão dizendo, não vai mudar o resultado.”
O sorriso insano de antes voltou a surgir no rosto de Raven. Aquele idioma, as reações dos elfos, a postura tensa da garota, tudo isso só alimentava mais a sua vontade de acabar com eles. A adrenalina corria em suas veias, e a loucura crescente em sua mente lutava para se libertar. Ele era um caçador agora, e eles, as presas.
Enquanto o elfo com o arco continuava a mirar, sem se atrever a disparar ainda, e a elfa parecia buscar uma abertura, Raven permanecia no centro, imóvel, mas não por falta de intenção. Seu corpo estava pulsando com a energia das runas, e sua mente já estava planejando o próximo movimento.
“O arqueiro vai atirar primeiro, está hesitando demais. Ela… é mais perigosa, parece ser a mais experiente. Vamos ver oquê eles conseguem fazer juntos ”
Assim que Raven ia se mover a tatuagem de olho em seu braço brilhou com uma luz vermelha, Raven soube que algo estava acontecendo. A voz que se seguiu era familiar, mas ao mesmo tempo diferente, mais jovem, quase infantil.
— “Olá, Raven. Eu sou a sua ferramenta, criada pelo meu senhor para ajudá-lo.”
Raven, com o rosto distorcido de confusão, reconheceu imediatamente o “gato” que havia entrado em seu braço mais cedo. Com uma mistura de irritação e cansaço, ele respondeu:
— “Agora? Sério? Não estou exatamente no melhor momento para conversas. Seja breve.”
A voz respondeu com tranquilidade, como se o caos da situação não importasse:
— “Tudo bem. Eu só acho que você deveria ouvir o que eles têm a dizer. Elfos são criaturas honestas. Não acho que te atacariam sem um motivo.”
Raven mordeu o lábio, insatisfeito, mas percebeu que o gato tinha um ponto. Ele estreitou os olhos, tentando manter a paciência.
— “Ok, ok… Mas como eu faço isso?”
A resposta veio com a mesma simplicidade:
— “Use as runas. Como meu senhor disse, elas têm potencial para realizar qualquer coisa.”
Raven suspirou profundamente, resignado. “Ótimo, mais um enigma,” pensou, enquanto o tempo à sua volta parecia desacelerar, como se tudo estivesse congelado enquanto ele e o “gato” falavam. Ele começou a pensar rapidamente nas runas que poderiam ajudá-lo a compreender a língua dos elfos.
— “Certo, isso deve funcionar.”
Com a mão estendida, Raven traçou três runas no ar: “Interpretatio /Intellectus/ Translate.”
Essas três runas, juntas, seriam suficientes para traduzir qualquer idioma que Raven encontrasse. Não apenas isso, mas também permitir que ele falasse e fosse compreendido, como se estivesse usando a língua nativa dos outros. Entretanto, para garantir que essa habilidade se mantivesse fixa, ele acrescentou um cântico:
— “Inhaero pellem meam, et factus sum in me pars mea, ut loquantur mihi omnes linguae.”
As runas se fundiram à sua pele, formando uma meia-lua ao redor de seu braço. Ele sentiu o poder da magia se estabilizar dentro de si e, por um breve momento, questionou:
— “Será que já está funcionando?”
O gato, com um tom brincalhão, respondeu:
— “Vá e teste.”
O mundo ao seu redor retomou o ritmo normal. Nem mesmo um segundo parecia ter passado desde o início da conversa com o gato. O arqueiro elfo ainda mantinha sua postura de mira, e a elfa segurava a adaga com mãos firmes, pronta para atacar.
“Bom, hora de ver se isso realmente funciona,” pensou Raven.
Raven levantou a mão, balançando-a de maneira displicente para chamar a atenção dos dois elfos, e, com um tom arrogante, disparou:
— Ei, seus idiotas, estão me entendendo agora? Eu realmente quero dar uma surra em vocês, mas antes quero saber por que diabos meteram uma flecha no meu olho.
Os elfos trocaram olhares, visivelmente surpresos, mas sem baixar a guarda. O elfo de aparência mais robusta o observou de cima a baixo com desdém e, com uma voz alta e cheia de desprezo, respondeu:
— Pare de ser dissimulado, cão do império. Sei que você veio em busca de informações sobre nosso assentamento.
Assim que terminou de falar, ele puxou a corda do arco novamente, pronto para disparar outra flecha.
— E como diabos você ainda está vivo? Eu tenho certeza de que atingi seu olho. Você deveria estar morto.
Raven, mantendo uma postura relaxada, esticou o corpo e respondeu com um tom calmo e quase debochado:
— Cão do império? Eu nem sei onde estou, seus idiotas. Acabei de chegar neste mundo e, como recepção, levo uma flechada no olho. Quanto a como ainda estou vivo… isso não é relevante.
Apesar do tom despreocupado, Raven estava pronto para reagir a qualquer movimento.
O elfo de aparência forte lançou um olhar questionador para a elfa, que até então rodeava Raven, e perguntou:
— Ele está dizendo a verdade, Lytharia? E como ele pode não ser deste mundo? Ele é um estrangeiro, igual ao imperador do antigo império humano da Segunda Era?
Lytharia, mantendo um tom firme e confiante, respondeu:
— Elric, os espíritos me disseram que ele não mentiu. E estão avisando para acreditarmos nele.
Raven, intrigado, pensou consigo mesmo: “Espíritos? Será que são esses pontos de cores diferentes que venho vendo desde que cheguei a este planeta? Talvez eu os enxergue por causa do coração de mana, que cria afinidade com a própria mana. E quem é esse imperador? Segunda Era?”
Assim que a elfa terminou de falar, Elric afrouxou a corda do arco e correu até o companheiro ferido, que estava desacordado no chão. Lytharia manteve os olhos em Raven, que não havia se movido desde o início do confronto. Ela se aproximou cautelosamente, abaixando-se levemente em um gesto respeitoso, e disse:
— Peço que nos perdoe. Pensei que você fosse um enviado do império. Os espíritos não mentem, e parece que eles gostam de você.
Raven olhou ao redor, notando as pequenas formas de energia que flutuavam ao seu redor. Balançou a mão com um ar de indiferença e comentou:
— Eu percebi. Eles não param de me rodear.
Ele voltou seu olhar para a elfa, com a expressão agora séria.
— Mas agora, me responda algumas perguntas.
Lytharia arregalou os olhos ao ouvir Raven dizer que conseguia ver os espíritos. Com um tom de surpresa, ela exclamou:
— Você consegue ver os espíritos? Isso não deveria ser possível para um humano…
Enquanto falava, Lytharia começou a rodear Raven, observando-o com curiosidade, como se estivesse tentando decifrar o que ele realmente era. Ela coçou a cabeça e comentou:
— Você realmente parece humano, mas tem algo a mais que eu não consigo identificar. Seus pais eram de raças diferentes?
Raven assentiu, sem oferecer mais informações do que o necessário, e logo retomou o foco com uma pergunta mais direta:
— Agora, me responda: por que vocês reagiram de maneira tão brutal comigo? E quem é esse imperador que vocês mencionaram?
Antes que Lytharia pudesse responder, Elric gritou desesperado:
— Venham me ajudar! Thalion vai morrer se não for curado!
Ambos, Raven e Lytharia, correram em direção ao elfo ferido. Quando se aproximaram, Raven se agachou ao lado de Thalion, analisando o estrago que havia causado com o soco.
— Então o nome dele é Thalion, huh… Sinto muito por tê-lo machucado tão gravemente — disse Raven, com um leve tom de remorso, mas mantendo sua frieza característica.
— Parece que com o golpe suas costelas quebraram e perfuraram o pulmão.
Lytharia olhou para Thalion, seu rosto pálido de preocupação, e rapidamente começou a murmurar uma prece em uma língua antiga, provavelmente pedindo ajuda aos espíritos para a cura. Elric, do outro lado, pressionava o ferimento no peito de Thalion, tentando, de alguma forma, conter o sangramento.
Raven observava a cena, ciente de que sua força desmedida havia causado aquilo, mas também impaciente para obter respostas. Ele sabia que os elfos possuíam poder de cura através da conexão com a natureza, mas não tinha certeza se seria o suficiente para salvar Thalion a tempo.
— Se ele morrer — Raven começou, encarando Lytharia e Elric, eu juro que não era minha intenção.
A tensão no ar era quase sufocante enquanto Lytharia lutava desesperadamente para salvar a vida de Thalion. Raven, observando a cena, permaneceu em silêncio por um momento, o rosto impassível, mas seus pensamentos corriam rápidos. Ele não queria mortes sobre sua consciência, não daquele jeito.
Sem dizer uma palavra, Raven se sentou no chão ao lado do jovem elfo, o corpo de Thalion ainda convulsionando e expelindo sangue enquanto lutava pela vida. Com um olhar frio e distante, Raven ergueu a mão acima do corpo ferido do elfo. Ele sabia que seu gesto poderia ser visto como uma ameaça pelos outros dois, mas decidiu arriscar.
Desativando todas as suas runas, exceto a de tradução, ele reuniu a mana restante em seu corpo. O ato de concentrar essa energia exigiu mais dele do que esperava, sua cabeça latejava, o cansaço pesando sobre seus ombros. Ele sabia que o que estava prestes a fazer poderia deixá-lo vulnerável, mas optou por ignorar essa possibilidade. Não importava.
Com a voz baixa, quase rouca, Raven entoou o cântico:
— “Natura hunc iuvenem vivum servat, corpus ab omni trauma sanat, organa et ossa recreat.”
Sua voz ressoou com uma intensidade crescente, apesar do controle que tentava manter. E então, finalizou com a runa que daria poder àquelas palavras:
— Terrena recuperatio.
A runa brilhou brevemente no ar, antes de se fundir com o corpo de Thalion. Um silêncio quase absoluto caiu sobre a floresta, quebrado apenas pela respiração irregular dos elfos ao redor. Lytharia e Elric ficaram imóveis, com olhos arregalados, incertos do que estavam testemunhando. A magia que emanava de Raven não era algo comum, e o fato de um humano ou o que quer que ele fosse possuir tal poder era, no mínimo, desconcertante.
Raven, sentindo o peso do esforço, abaixou a mão, exausto, observando o resultado de sua ação. Thalion começou a respirar de forma mais regular. O sangue que antes jorrava de suas feridas lentamente parou, e as costelas quebradas começaram a se regenerar diante dos olhos incrédulos de Lytharia e Elric.
Raven respirou fundo, sua cabeça latejando mais forte agora. Ele sabia que havia gastado mais mana do que tinha disponível, e isso o deixaria em desvantagem. Mas, por ora, ele não se importava.
Ele olhou para Lytharia e Elric, que ainda estavam em choque com o que acabaram de presenciar. Com um tom frio, mas firme, Raven murmurou:
— Agora, podemos falar sobre o que realmente está acontecendo aqui.
Ambos os elfos suspiraram em alívio quando viram Thalion começar a se recuperar, mas a cautela em seus olhos aumentou ainda mais. Raven demonstrara uma magia que eles nunca haviam presenciado, algo incomum até mesmo entre as criaturas mais misteriosas de seu mundo. Lytharia, visivelmente mais tranquila, virou-se para Raven e, hesitante, sentou-se no chão à sua frente.
— Obrigado por salvar nosso companheiro, disse Lytharia, com um tom menos hostil. Vou te mostrar por que te atacamos. Você poderia vir à nossa aldeia?
Elric, o elfo de aparência robusta, acenou com a cabeça, levantando Thalion com cuidado. Ele o jogou sobre o ombro com uma destreza que demonstrava anos de treinamento e experiência. Voltando seu olhar frio para Raven, ele adicionou:
— Vamos lá, mas saiba que, se você tentar qualquer coisa contra o nosso povo, não hesitaremos em matá-lo.
Raven observou os dois em silêncio por um momento, suas feições impassíveis. Ele acenou com a cabeça em sinal de concordância e respondeu de maneira tranquila:
— Está tudo bem. Não farei nada contra vocês.
Mesmo com a aparente trégua, a mente de Raven fervilhava de desconfiança e inquietação. “Será que estou indo direto para uma armadilha?”, ele ponderava, os pensamentos fluindo como veneno em seu cérebro, criando cenários cada vez mais sombrios. “É realmente possível que eles confiem tanto assim nos espíritos a ponto de baixar a guarda? Apenas porque essas entidades, seja lá o que forem, parecem… ‘gostar’ de mim?”
Ele tentava mapear todas as possibilidades, mas quanto mais pensava, mais a situação lhe parecia incerta. E a incerteza o incomodava profundamente. “Por que eles confiam em algo tão intangível?”, Sua mente começou a correr com suposições paranóicas. “O que mais estão escondendo?“.
Ao seu redor, a floresta parecia vibrar com vida, mas também com segredos. O som das folhas movendo-se ao vento, o farfalhar distante de animais escondidos entre as sombras das árvores, tudo parecia sussurrar advertências veladas que Raven não conseguia ignorar. “A qualquer momento, pode haver uma emboscada.”
Ele sentia os olhos dos elfos sobre si, e embora soubesse que eles também estavam cautelosos, Raven percebia o desconforto em sua própria pele. “Quem ou o que são esses espíritos? Por que se importariam comigo?”,Ele reprimiu a dúvida com um sorriso amargo.
Enquanto caminhavam pela floresta, Raven permanecia atento, os sentidos em alerta máximo. Ele sabia que a recuperação de Thalion criara uma dívida de gratidão, mas isso não significava que eles fossem conhecidos. A tensão entre os dois lados ainda era palpável, e cada movimento de Elric e Lytharia era observado cuidadosamente por Raven, que já havia aprendido a não confiar plenamente em ninguém.
Mesmo com a desconfiança, Raven sentiu uma curiosidade crescente. Aquela menção ao “império” e ao misterioso imperador da Segunda Era mexeram com ele. Se existia alguém como ele, um estrangeiro, que havia chegado ali em tempos antigos, talvez houvesse algo maior em jogo.
Os passos ecoavam suavemente entre as árvores, o ar denso da floresta parecia quase sufocante, e Raven, por mais confiante
que se mostrasse, sabia que estava em terreno perigoso. “Se isso for uma armadilha,” pensou, “vou ter que estar preparado para reagir rapidamente.”
–
Ilustração dos elfos.